Em Itália, país severamente atingido pela pandemia do novo coronavírus, engalanar uma praça e meter uma pequena orquestra a tocar ao vivo num coreto, tem um significado especial. Mais do que regressar à normalidade, é retomar um hábito vital para a cultura de um povo, o da celebração. Não é por acaso que a plateia que, na noite da última quarta-feira, assistiu ao desfile da coleção resort 2021 da Christian Dior, na Piazza del Dumo, na cidade de Lecce, foi maioritariamente composta por locais.
Na primeira fila ou a partir das varandas das suas casas, foram dos poucos a assistir ao vivo ao espetáculo que parou a cidade, situada no salto da bota italiana. Além dos poucos clientes da marca, do batalhão de manequins e da equipa que tornou o desfile possível, o resto do mundo assistiu a tudo à distância.
Na base da coleção, tal como no espetáculo que agitou o serão dos cerca de 20 milhões que seguiram a transmissão, estiveram as tradições e o saber fazer locais. “É importante que os locais percebam o valor da sua tradição”, afirmou Maria Grazia Chiuri, diretora criativa da maison, durante uma conferência de imprensa via Zoom.
Italiana de Roma, mas com as raízes paternas na região de Puglia, Chiuri tem feito das coleções resort verdadeiras odes às artes locais — no ano passado o destino foi Marraquexe. Há quatro anos ao leme de uma das mais emblemáticas casas parisienses, a designer nunca quis que o universo Dior se limitasse à sua própria herança. Tem preferido, em vez disso, explorar novas técnicas e artesãos, bem como incorporar valores à partida alheios ao pronto-a-vestir.
“Em Paris, eles orgulham-se imenso da sua tradição, a moda faz parte da herança cultural. Mas em Itália não temos a mesma atitude. Provavelmente, porque essas tradições são perpetuadas por mulheres, nas suas casas, e por isso existe a ideia de que é um trabalho doméstico. Não é visto como um trabalho criativo, logo não lhe é dado o mesmo valor. Não é celebrado”, explicou Chiuri. “Com este desfile, espero apresentar um ponto de vista diferente à população local. Não é só um diálogo com a nossa audiência lá fora, é um diálogo com o território”.
Coube à artista Marinella Senatore desenhar o cenário — arcos, colunas e frisos de luz e cor, cujos motivos foram adaptados a algumas peças do desfile. Numa fundação local — Le Costantine — foram produzidas todas as peças em tecelagem. Bordados locais, couros trabalhados e lenços na cabeça remeteram para códigos da cultura desta região italiana, voltada para o Adriático. Orquestra e companhia de dança não foram deixadas ao acaso, também elas são grupos locais.
O desfile da Christian Dior aconteceu um dia depois da Valentino ter apresentado a sua coleção de alta-costura através de uma performance em estúdio. A própria semana da alta-costura de Paris decorreu maioritariamente em formato digital. Gigantes como a Chanel e a Louis Vuitton optaram igualmente por apresentar as suas coleções resort (ou cruise) através de um vídeo e de uma produção fotográfica, respetivamente.
Foi neste contexto que a marca francesa montou um desfile, a centenas de quilómetros da grande capital da moda. Um lado da moda que a Dior não quer deixar morrer, mesmo que a atual pandemia leve a esforços redobrados. “As pessoas têm de fazer o que é melhor para as suas marcas, mas a Dior vive do brilho e da energia dos seus desfiles desde 1946. É o nosso ADN, é o nosso negócio”, afirmou Pietro Beccari, CEO da marca, em declarações à Vogue.
A próxima paragem é Xangai. Na próxima semana, inaugura “Christian Dior: Designer of Dreams”, no Long Museum West Bund, a maior exposição alguma vez feita pela maison. Ficará patente até ao dia 4 de outubro. Para já, espreite as imagens do desfile desta quarta-feira, na fotogaleria.