Em Paris, foi a precisamente a mais ortodoxa das linguagens da moda a primeira a mergulhar por inteiro numa nova realidade e a ter de reinventar-se. Confinada pelo vírus e pelas medidas de segurança que procuram mitigá-lo, a alta-costura não saiu de cena, apenas se moldou às circunstâncias e trocou os desfiles apoteóticos, repletos de assistência, por novos palcos para apresentar a mais nobre das artes de atelier.

Durante os últimos dias, nomes sólidos como a Chanel, a Christian Dior e a Schiaparelli escreveram um novo capítulo nos seus anais — ambos fundidos naquela que é a história da alta-costura parisiense. Outros surpreenderam ao apresentar as coleções para o próximo outono-inverno em curtas-metragens — com drama, fantasia e convidados especiais à mistura.

Sempre com um pé na passerelle, a performance artística voltou como palco para a moda e foi uma útil ferramenta para a marca italiana Aelis. A produção pouco inventiva assinada pela Chanel ganhou uma simplicidade e uma sobriedade próprias. Também Giambattista Valli seguiu a fórmula da última estação, mas agora com Joan Smalls no papel de musa.

Outros criadores resistiram ao apelo das novas plataformas e agarraram-se a formatos (mais ou menos) convencionais de desfile. A Balmain percorreu o Sena com a nova coleção de alta-costura, mantendo o público nas margens do rio, ou seja, à distância. Nomes como Stéphane Rolland, Georges Hobeika e Alexis Mabille fizeram as manequins desfilar em tempos de pandemia. Bouchra Jarrar, outro nome da moda francesa, limitou-se a requisitar duas modelos e a filmar um pequeno vídeo intimista no próprio apartamento e num parque.

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À exceção da Maison Margiela, que vai prolongar a apresentação da coleção até à próxima semana, e da Valentino, que tem uma performance ao vivo marcada para o dia 21 de julho, nos estúdios da Cinecitta, em Roma, a temporada da alta-costura em Paris pode considerar-se fechada. Eis os pontos altos.

Iris van Herpen

Num momento de mudança, a designer holandesa repensou a sua apresentação de alta-costura. Em vez de uma coleção, van Herpen concebeu uma única peça — um vestido a que chamou “Transformation”. “Trabalhar neste projeto deu-me uma sensação de novo começo. Temos de aceitar que tudo está a mudar e eu não quero apegar-me à estrutura que conheci […] Acho que o sistema da moda vai mudar, faz parte. É importante não parar nem bloquear, é uma maneira diferente de trabalhar. É preciso deixar de ter o foco na quantidade. Não acho que ter mais criações resultem necessariamente num significado mais profundo. Na verdade, pode ser o oposto”, afirmou a criadora à Vogue.

Nesta transformação, a técnica manual e a tecnologia que há muito coabitam no atelier de Iris van Herpen uniram-se à arte cinematográfica de Ryan McDaniels. A protagonista é Carice van Houten, atriz holandesa que desempenhou o papel de Melisandre na série “A Guerra dos Tronos”. O vestido parte de uma espécie de esqueleto negro que dá forma e estrutura a camadas de organza de seda plissada. Movimento e delicadeza expressão a ideia de crescimento, escolhida propositadamente pela designer para este momento.

Antonio Grimaldi

Por sua vez, Antonio Grimaldi convidou Asia Argento a realizar e protagonizar uma curta-metragem. A coleção, à semelhança do enredo, ofereceu drama, com uma reinterpretação da história de Electra, personagem da mitologia grega que quis vingar o pai planeando o matricídio com o irmão Orestes. São oito minutos incluem plumas e sangue.

Schiaparelli

Enquanto todas as outras se desdobraram em soluções digitais, esta maison optou por apresentar o elemento base de qualquer coleção — o croqui. Sob a direção de Daniel Roseberry, as afinidades da Schiaparelli com o mundo das artes plásticas continuam evidenciadas. Num dos esboços revelados pela marca, o pairing entre vestido e animal de estimação é perfeito. Oportunamente, a alta-costura do próximo outono ganhou o título de Coleção Imaginária.

© Schiaparelli

Christian Dior

Para Maria Grazia Chiuri, a pandemia foi o pretexto ideal para transpor uma coleção de alta-costura para o plano da sétima arte. Realizada por Matteo Garrone, a curta-metragem mostra um universo de criaturas encantadas, corpos e fantasias que povoam uma floresta usando as criações do experiente atelier.

O charme da maison Dior não ficou por aqui. Além das peças em tamanho real, as experientes costureiras produziram réplicas com 40 centímetros de altura, as mesmas que surgem no pequeno filme, dentro de um mostruário na forma de uma casa de bonecas. Reduzir a escala das peças não é uma estratégia inédita. Durante a Segunda Guerra Mundial, o método foi usado por Christian Dior para chegar a novas clientes.

Além da minúcia redobrada, a sessão fotográfica fez ainda a ligação com o mote surrealista da coleção. Cenários distorcidos e composições de objetos inusitados são o mais recente cartão-de-visita da marca francesa, que voa até Itália para, já no dia 22 de julho, apresentar a sua coleção resort.

Viktor & Rolf

Em tempos de crise e incerteza, a dupla holandesa reage com otimismo e com um quê de entretenimento, seja na forma de um longo e volumoso sobretudo cor-de-rosa, decorado com laços e remates dourados, seja através de uma apresentação entusiasticamente narrada, a fazer lembrar os felizes anúncios dos anos 50. A voz é do cantor Mika, que descreve as peças — com os seus detalhes e estados de espírito — como se de um concurso de prémios se tratasse.

“Três guarda-roupas para três mentalidades durante este período extraordinário de mudança”, começa por apresentar. A coleção vai do sentimento de “tristeza e raiva tão comum nestes dias” às “emoções complexas” despertadas pelas redes sociais, do “volume generoso que garante a máxima segurança” no regresso ao mundo exterior à “sensação de realeza”. Afinal, bem que todos os desfiles podiam ter um narrador.

Chanel

Para a Chanel, foi tudo uma questão de seguir a receita já adotada aquando a apresentação da coleção , há precisamente um mês. Virginie Viard concentrou a energia de uma coleção de alta-costura em 30 visuais fotografados em estúdio e com Adut Akech no papel de musa. A combinação foi eletrizante, com silhuetas de baile e cocktail, brilhos e pedraria, cores vivas e penteados alinhados com o estilo punk dos anos 80. Além da sessão fotográfica, há um vídeo para contar a história.

Balmain

Em clima de celebração, a Balmain embarcou numa viagem de barco para assinalar os seus 75 anos de história. A bordo, um grupo manequins usou criações icónicas dos arquivos de Pierre Balmain e dos seus sucessores, mas também clássicos revisitados pelo próprio Olivier Rousteing. Um evento a que o público pôde assistir a partir das margens do Sena e que cruzou algumas das pontes históricas de Paris ao som da cantora francesa Yseult. O momento tem transmissão marcada para o dia 11 de julho.