Estava tudo preparado para mais um jogo num dos três pavilhões encontrados pela NBA para fazer o regresso à competição no complexo ESPN Wide World of Sports da Disney World, em Las Vegas. Bancos preparados, bolas colocadas, árbitros equipados e na zona da mesa. Faltavam os jogadores. Os jogadores que nunca vieram de um dos lados do campo (os outros chegaram a fazer o aquecimento). Se o dia 11 de março se tornou histórico no basquetebol americano com a suspensão do jogo entre Utah Jazz e New Orleans Pelicans pela identificação de um caso positivo entre os atletas da equipa da casa (e a competição parou logo nesse mesmo dia), o dia de 26 de agosto ficará da mesma forma na história como o primeiro em que uma equipa se recusou a entrar em campo. Mais: se o movimento começou no basquetebol, houve outras modalidades nos EUA também a cancelar jogos.

Mensagens políticas, jogadores ajoelhados no hino e uma ironia à volta de Gobert: o regresso da NBA na Disney World

De acordo com a imprensa norte-americana, nomeadamente os (poucos) jornalistas que têm acesso à “bolha” que foi criada em Las Vegas, os jogadores dos Milwaukee Bucks recusaram-se a sair do balneário no jogo 5 da primeira ronda dos playoffs frente aos Orlando Magic, como forma de protesto por mais um caso de violência policial nos EUA, agora em Wisconsin, com Jacob Blake, um cidadão de 29 anos, a ser atingido com sete tiros por um polícia pelas costas quando tentava entrar no carro, num episódio que foi filmado por pessoas presentes. Sabendo do que se passava, e em fase de aquecimento, os adversários decidiram também não ir a jogo.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Algumas coisas são mais importantes do que o basquetebol. A posição adotada hoje pelos jogadores e pela equipa e a sua organização demonstra que estamos fartos. O que é suficiente, é suficiente. Tem de haver uma mudança. Estou incrivelmente orgulhoso dos nossos rapazes e apoiamos a 100% os nossos jogadores, prontos para ajudar e alcançar uma verdadeira mudança”, comentou Alex Lasry, o proprietário dos Milwaukee Bucks. “Agora não podemos fazer nada. Para começar e para ser honesto, nem devíamos ter vindo para este maldito lugar. Ao fazer isso, tirámos todo o foco de atenção dos assuntos que realmente deveriam estar em destaque mas é o que temos. Estamos aqui e a partir daqui não podemos fazer nada”, comentara antes o experiente George Hill.

A NBA está reunida de urgência para tentar desbloquear a situação e encontrar um compromisso que, não tendo o objetivo de desvalorizar a causa (aliás, a própria organização deu desde início aos jogadores de todas as equipas a possibilidade de entrarem em campo com palavras de força nas costas como “Igualdade” ou “Justiça” em vez dos habituais nomes), possa manter a competição. Problema? Se na última madrugada se levantava a possibilidade de haver um boicote nos Raptors-Celtics, a preocupação passava para a hipótese de outras equipas que também iriam entrar em campo esta quarta-feira (Thunder-Rockets e Trail Blazers-Lakers) seguissem a mesma atitude. E foi isso mesmo que aconteceu, como foram avançando órgãos como a ESPN ou a The Athletic. Ou era: sabendo de forma antecipada dessa posição transversal, a NBA decidiu cancelar os encontros marcados para esta noite.

Segundo Adrian Wojnarowski, jornalista da ESPN, a maioria dos proprietários das equipas e os próprios dirigentes máximos da NBA foram apanhados de surpresa porque, apesar de terem conhecimento das medidas que estavam a ser ponderadas, não colocaram a hipótese de não haver jogos esta noite. Os jogadores vão reunir-se ainda esta noite para decidirem futuras medidas a tomar sendo que, num cenário extremo que nesta altura não se coloca, a época poderia estar em risco. Para já, a principal dúvida é se os jogos voltam ou não esta quinta-feira.

De recordar que esta era uma possibilidade que se colocava nas últimas horas, incluindo ações concertadas entre equipas: os jogadores de Toronto Raptors e Boston Celtics, que se vão defrontar nas meias da Conferência Este, reuniram-se esta terça-feira no hotel para discutir a possibilidade de não aparecerem no pavilhão ou, como possibilidade alternativa, marcarem presença mas não jogarem. Nesse encontro estiveram também o presidente e um dos vices da Associação de Jogadores, Chris Paul e Andre Iguodala, para aconselhar as equipas.

Noutra das reações mais fortes e emblemáticas da noite, Lebron James, um dos melhores jogadores da atualidade e que também viu o encontro entre os seus Los Angeles Lakers e os Portland Trail Blazers ser adiado (a equipa de LA vence a série por 3-1 e poderia carimbar a passagem às meias da Conferência Oeste), escreveu nas redes sociais a frase “Que se f… isto! Exigimos mudança! Estou farto disto”. A estrela, que procura mais um título da NBA pela terceira equipa diferente depois de Miami Heat e Cleveland Cavaliers, foi sempre um dos elementos com maior presença em termos sociais perante os casos de violência e discriminação no país mas, em paralelo, colocou sempre de parte o regresso da NBA por considerar que deveria haver uma separação entre os dois assuntos. Esta noite, a reação foi diferente e teve prolongamento em muitos outros jogadores ainda em competição.

Há ainda uma nota muito referenciada na imprensa americana: faz esta quarta-feira quatro anos que Colin Kaepernick, então jogador dos San Francisco 49ers, ajoelhou-se na altura do hino nacional antes de um jogo, uma imagem que se tornou icónica, que foi seguida por muitos outros elementos das mais diversas modalidades e que ainda hoje representa nos eventos desportivos o movimento Black Live Matters – mas que, pelo mediatismo que criou, acabou por fazer com que o quarterback não mais voltasse a ter uma equipa na NFL. E como aquilo que os Milwaukee Bucks começaram foi tudo menos um movimento isolado, os Milwaukee Brewers decidiram também boicotar o jogo com os Cincinnati Reds para a Liga de basebol, numa atitude que podia ser seguida por mais equipas como os Seattle Mariners, o conjunto com mais jogadores de raça negra da modalidade. A liga feminina de basquetebol (WNBA) decidiu também cancelar os três encontros marcados para esta noite. Mais tarde, o Inter Miami-Atlanta United, da liga de futebol, também foi suspenso. E os protestos foram até à TV, com o antigo jogador e campeão Kenny Smith a sair do programa que faz com os bem conhecidos Charles Barkley e Shaquille O’Neal por forma a mostrar a sua solidariedade com todos os atletas da NBA.

Os jogadores da principal liga de futebol (MLS) boicotaram também cinco jogos na noite de quarta-feira, juntando-se assim ao protesto coletivo contra a injustiça racial. Já a tenista japonesa Noami Osaka, que deveria jogar esta quinta-feira a semifinal do torneio WTA em Cincinnati, abandonou o torneio em protesto.