Nome: Balada Para Sophie
Autor: Filipe Melo e Juan Cavia
Editor: Tinta-da-China
Páginas: 320
Preço: 36,00€
Depois da saga de Dog Mendonça e Pizzaboy e dos excelentes Os Vampiros e Comer/ Beber, a dupla Juan Cavia e Filipe Melo regressa agora para algo completamente diferente. Balada Para Sophie é uma banda-desenhada de grande fôlego onde Julien Dubois, um pianista, rico, famoso e, por isso mesmo, amargurado conta a história da rivalidade que viveu ao longo de toda a sua vida com François Samson, uma rivalidade à qual o seu némesis parece de todo indiferente.
A história narrada por um Julien moribundo (que em muitos momentos se assemelha ao protagonista do conto de Machado de Assis, “Um Homem Célebre”) começa numa competição para jovens pianistas em 1933, em Cressy. François, o filho do responsável de limpezas do teatro, brilha surpreendentemente, mas, apesar da sua gritante superioridade, viria a perder o concurso graças à influência da mãe de Julien junto do júri e dos jornalistas presentes.
Esta vitória nos bastidores vai marcar Julien para sempre, vendo nela a demonstração cabal da virtude de um prodígio para quem os títulos e os reconhecimentos são infinitamente menos importantes do que a música que tocava e, acima de tudo, infinitamente menos importante do que uma verticalidade moral que não pode deixar de irritar alguém que, tendo muito menos a perder, não deixa de se vergar às regras de um jogo que repudia A repulsa que teríamos por alguém caído em mil graças como Julien é, contudo, sempre atenuada pela repulsa que o próprio Julien, mais tarde transformado na estrela pop Eric Bonjour, sente em relação a si mesmo e à vacuidade dos seus triunfos.
Julien vê-se como o vilão da sua própria vida por olhar para si mesmo à distância, com uma enorme raiva e vergonha. Esta raiva parece advir, mais do que dos gestos reprováveis que foi tendo ao longo da vida, de uma enorme intolerância em relação à sua própria história de vida, às vitórias que, na sua opinião, imerecidamente acumulou, e do vazio de que a sua ascensão se foi revestindo. Julien é incapaz, ao contrário da jornalista que o vai ouvindo e do leitor que o vai lendo, de ver o caminho que o levou à queda, deixando-se cegar pela distância entre quem Julien acha que deveria ter sido e quem, na verdade, foi (confundindo, nesse caminho, a pessoa que é com os gestos que teve). Nesse sentido, a frase que lhe vai ser repetida inúmeras vezes ao longo da vida torna-se cada vez mais grotesca por, mascarando-se de um elogio aos seus feitos, vir apenas acentuar a sua derrota. Uma e outra vez, maioritariamente da boca de mulheres, Julien é informado de que tem mãos de pianista. Esta ideia ecoa dentro de si, fazendo-o ver quão pouco a sua vida se assemelha com a que alguém com mãos de pianista, segundo Julien, deveria ter. Esta ideia ressoa cada vez com maior força à medida que a marcha triunfal de Julien se distancia da via reta e pedregosa de François. Evidentemente, sabendo nós desde o princípio que Julien viria a perder dois dedos da sua mão, percebemos que essa perda literal virá apenas, segundo o amargurado pianista, retificar o óbvio erro para o qual os seus dedos incessantemente apontavam.
É também notável a maneira infantil, bastante própria (por paradoxal que possa parecer) das pessoas envelhecidas, com que Julien recorda os seus tempos passados. François é invariavelmente lembrado como uma personagem quase angelical e o agente de Julien como um bode em tudo igual ao próprio Belzebu. Esta recordação polarizada e fantasiosa do passado poderia, em grande medida, ser justificada pelo cancro já espalhado para a cabeça, pelos charros que vai fumando ou pelo seu passado de excessos. No entanto, parece mais vir da maneira tão característica com que, no fim da vida, recordamos um passado que retrospetivamente tendemos a povoar de monstros e de deuses.
Contudo, um dos maiores triunfos de Filipe Melo e Juan Cavia prende-se com a recusa de um dos argumentos que é muitas vezes feito em relação à atratividade da banda-desenhada como forma de arte e que foi apresentado pela primeira vez, tanto quanto sei, por Scott McCloud na sua obra seminal Understanding Comics, The Invisible Art. McCloud alega que o sucesso do género se deve à capacidade de apresentar histórias densas, com cenários vivos e bem desenhados, vividas por personagens sem grandes traços característicos e de contornos pouco definidos. É isso, efetivamente, que parece acontecer, por exemplo, nas aventuras de personagens sem sal como Tintin ou o Rato Mickey.
Mas aceitar este argumento implica ver a banda-desenhada como uma arte menor, apta meramente a entreter públicos pouco sofisticados e egocêntricos, incapazes de ver a vida de outros como sua e de encontrar uma absoluta universalidade na especificidade de vidas diferentes da nossa. Aceitar este argumento implica, também, esquecer alguém como Bill Watterson que tantas vezes negligencia, e não por falta de talento, as paisagens que rodeiam as aventuras do pequeno Calvin. A banda-desenhada será, por isso, ao contrário do que argumenta McCloud, e como Melo e Cavia tão bem mostram, tanto mais triunfal quanto mais aproveitar a circunstância única de poder misturar imagem e texto para criar personagens que, como Julien, nada têm a ver connosco, mas em que nos projetamos a cada passo.
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