Quando, em março, a pandemia se instalou em força na Europa, depois de semanas de tragédia na China, muitas pessoas aventaram a hipótese de estarmos perante uma oportunidade. A crise de saúde poderia servir para parar – e estávamos de facto quase todos parados, em confinamento – e pensar numa espécie de mundo novo, com mais solidariedade e atenção ao essencial, com aprofundamento da ética e dos laços afetivos, com uma consciência ecológica que nos fizesse sonhar com um planeta mais equilibrado.

E, no entanto, apesar de muitos poderem até ter seguido essa via, parece que, mal as sociedades acordaram do entorpecimento causado pelo confinamento – e que ainda dura, se admitirmos que estamos apenas numa fase intermédia de um filme longo –, foram confrontadas com uma crise económica que acrescia à crise de saúde.

Num plano já não pessoal, mas ligado à economia, as empresas estão agora perante um dos maiores desafios de sempre: manter os negócios a funcionar, recuperar as perdas dos últimos meses e estancar o que alguns economistas antecipam ser um período de recessão. Teóricos e urbanistas vaticinam o fim das grandes metrópoles, falam de uma tendência agravada pelo novo coronavírus: o trabalho à distância, a deslocação das pessoas para subúrbios de qualidade, quando não para zonas rurais – porque o espaço urbano como o conhecíamos até agora se teria tornado num espaço de desconfiança onde grandes aglomerados de pessoas representariam o perigo do contágio.

A vigilância do Estado e a quebra de laços entre pessoas, mas também novas formas de solidariedade e de bem-estar físico e espiritual são identificadas como comportamentos que podem ter vindo para ficar. Neste ecossistema a que se convencionou chamar “novo normal”, e que se caracteriza fundamentalmente pela incerteza, as previsões tendem a ser efémeras mas ao mesmo tempo há já sinais concretos de uma mudança em curso. É o que acontece na área da mobilidade – quer dizer, nas políticas de transportes, na estratégia comercial de marcas e empresas, nas práticas diárias e nas opções dos cidadãos.

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Será caso para dizer que a crise é uma oportunidade de afirmação e desenvolvimento dos transportes eficientes, amigos do ambiente e com emissões de dióxido de carbono próximas de zero? Provavelmente, sim. Desde há vários anos, os veículos elétricos vêm assumindo um novo protagonismo na vida das pessoas e das cidades e a isto acrescem desenvolvimentos tecnológicos como a inteligência artificial, que dentro de poucos anos poderá transformar o carro particular numa máquina quase autónoma.

No mundo pós-confinamento, as questões da saúde tendem a ser cada vez mais valorizadas e, neste particular, os automóveis elétricos têm um papel na melhoria da qualidade de vida. Os veículos com emissões de gases poluentes, que provocam o efeito de estufa e desequilibram o clima e as diferentes formas de vida, já eram vistos como um problema. E agora ainda mais: simbolizam, para alguns, uma fonte de insalubridade.

Ao mesmo tempo, o profundo silêncio em que os países mergulharam durante a última primavera, levou-nos também a perceber que as cidades precisam urgentemente de diminuir o ruído gerado pela atividade diária, para dar lugar a zonas ou momentos de descanso e alguma paz de espírito – mas agora sem que isso seja sinónimo de paragem forçada. Como escrevia recentemente o jornal alemão Süddeutsche Zeitung, a cidade só é habitável sem stress em excesso e se houver espaços de liberdade em número suficiente: quando a área de lazer substitui a sala de jogos, quando o parque é preferível ao jardim privativo, quando o encontro entre amigos no restaurante se faz também na sala de jantar lá de casa.

Um estudo de junho último, publicado pela consultora de origem americana McKinsey & Company, indicava que o impacto da crise do coronavírus na mobilidade urbana depende, no caso do Reino Unido, da resposta do Estado mas também da indústria automóvel. E não há razões para acreditar que noutros países seja diferente. A extensão da recessão económica prevista e, claro, a resposta de cada pessoa ao receio e às regras sanitárias são outros fatores a ter em conta.

Se alguns cidadãos, por falta de alternativa, continuam a utilizar os transportes públicos apesar das dúvidas e contradições, até entre altos responsáveis, sobre se nestes contextos há ou não maior risco de contraírem a covid-19, já outros podem apostar numa mobilidade individualizada, que percecionam como mais segura e saudável. É aqui que tudo pode estar a mudar a favor dos elétricos. Ao resguardo da saúde dos passageiros – o que toda a viagem em automóvel particular oferece – juntam o menor impacto ambiental, o que no mundo atual é uma característica valorizada e cada vez mais necessária.

A poluição sonora é igualmente relevante para que mais pessoas possam aderir à mobilidade elétrica dentro das cidades. Os elétricos podem emitir menos quatro decibéis do que os carros convencionais e se amanhã todos os portugueses conduzissem elétricos, o ruído diminuiria drasticamente, o que daria resposta a um problema que, pelo menos até ao início da pandemia e à paragem da economia, representava uma preocupação maioritária. Em Lisboa, por exemplo, o incómodo do ruído surge desde há vários anos em inquéritos públicos e de resto são vários os estudos que demonstram o impacto positivo da redução de ruído no ecossistema da cidade, com melhorias no bem-estar físico e mental dos cidadãos.

Mas, como já se disse, e todos as pessoas informadas sabem, a imprevisibilidade é hoje muito grande. Bill Fulton, diretor do Kinder Institute for Urban Research da Rice University, afirmou em abril último que a epidemia da Covid-19 só irá acelerar as atuais dinâmicas de como se trabalha e como se chega ao local de trabalho, mas também poderá agravar as desigualdades sociais e económicas.

O já citado estudo da McKinsey indica que os trabalhadores de escritório deverão ser os que em cenário de problemas económicos mais conseguirão manter o poder de compra, mas também aqueles que mais facilmente poderiam trabalhar à distância, através do computador – logo, seriam os que menos interesse revelariam em adquirir novos automóveis, por não necessitarem de deslocações frequentes. Por outro lado, os trabalhadores do comércio e do atendimento ao público podem ser aqueles para quem as viagens casa-trabalho-casa se manterão, logo, com mais interesse em evitar transportes públicos e adquirir um carro próprio – mas se a crise se agravasse, veriam diminuído o poder de compra, o que lhes limitaria essa aquisição. E, no entanto, prevê a McKinsey: devido à covid-19, as vendas de elétricos devem conhecer importantes subidas na Europa ao longo dos próximos dois anos.

Por enquanto, sabe-se que a imposição de distanciamento social tem levado as pessoas a preferir andar a pé ou utilizar a bicicleta, mas isto quando as distâncias são curtas. Para percursos médios ou longos, o automóvel particular assume-se como preferencial. Na China, por exemplo, o primeiro país a mergulhar na crise pandémica e também o que dela saiu mais cedo, a empresa de estudos de mercado Ipsos verificou que o carro próprio passou do terceiro para o primeiro lugar das preferências, na fase seguinte ao desconfinamento. Na Europa a tendência deverá ser a mesma, até porque as autoridades são as primeiras em alguns países a desaconselhar o uso do transporte público. A ser assim, o apoio do Estado à compra de automóveis por aqueles que hoje ainda não dispõem de nenhum surge como outra das necessidades a que vamos assistir nos próximos meses.