O Centro de Integridade Pública (CIP), ONG moçambicana, denunciou esta segunda-feira num relatório alegados abusos sexuais de mulheres deslocadas em Cabo Delgado, norte do país, em troca de ajuda humanitária, considerando haver silêncio do Governo e Nações Unidas sobre o assunto.

“Em todas as casas em que entrámos, dezenas e dezenas, em muitos bairros, esta questão foi sempre confirmada: em todas, as pessoas conheciam esse tipo de casos”, disse à Lusa o investigador Borges Nhamire, um dos coautores de um relatório sobre deslocados do conflito de Cabo Delgado, hoje divulgado.

Os alegados abusos “são perpetrados pelas autoridades locais, que têm o poder de elaborar as listas dos deslocados que devem receber os socorros”, lê-se no documento, segundo o qual, “em troca da inclusão nas listas, as lideranças locais exigem favores sexuais de mulheres e meninas vulneráveis”.

A situação foi detetada sobretudo nos bairros de Pemba, capital da província, e menos frequentemente na província de Nampula e na generalidade dos campos de deslocados, mais organizados.

Segundo Borges Nhamire, as queixas que têm sido feitas pelos deslocados não têm tido consequências na punição dos infratores.

Por outro lado, o CIP refere que organizações governamentais e agências das Nações Unidas têm feito do assunto “um tabu”, em vez de o denunciarem à luz do dia para que todos ficassem cientes de uma “tolerância zero” para o abuso sexual.

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O assunto tem sido tratado como um grande tabu pelas autoridades governamentais e pelas agências das Nações Unidas que coordenam a assistência aos deslocados em Cabo Delgado. O abuso de mulheres nunca foi relatado nos relatórios das agências da ONU”.

Borges Nhamire referiu à Lusa que a questão foi colocada a três organizações das Nações Unidas, o Programa Alimentar Mundial (PAM), a Organização Internacional das Migrações (OIM) e o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) “e não responderam”, nem acerca deste assunto, nem de outros, “e não é da natureza destas organizações não responderem”.

As três optaram pelo silêncio: mandámos ’emails’, cartas, fizemos telefonemas e nunca aceitaram responder. O assunto está a ser tratado como tabu”.

Se o tema não é tratado abertamente, os autores “vão pensar que podem, no escuro, abusar das mulheres e que não há risco”, alertou, realçando que o contexto local é de pessoas “que não conhecem as leis internacionais, nem os limites do que podem ou não fazer”.

Nhamire reconheceu que o contexto não é fácil.

As autoridades “permitem que as ONG trabalhem desde que não contrariem a boa imagem do Estado ou das instituições governamentais” e “levantar este assunto estaria a pôr em causa a boa imagem. Por isso, muitas pessoas não falam disso”.

No entanto, “o silêncio nunca é a melhor opção, porque o custo que tem para a vida das pessoas é muito alto”, sobretudo para quem já é vítima de um conflito armado e que “não deve ser vítima duas vezes”.

Borges Nhamire considerou importante que o Governo faça “um trabalho de base”, referindo que está pouco presente em Cabo Delgado, segundo detalha o relatório: “há autoridades locais e voluntários”, mas que “não têm vínculo com administração pública”.

As próprias agências humanitárias não têm autoridade para punir os prevaricadores, acrescentou.

A par de denúncias de abusos sexuais, o CIP relata ainda queixas de desvio de ajuda humanitária pelos chefes locais.

A Lusa tentou obter reações por parte do Instituto Nacional de Gestão de Calamidades (INGC) moçambicano e das Nações Unidas em Moçambique ao relatório do CIP, mas, em ambos os casos, eventuais declarações foram remetidas para mais tarde.

O relatório daquela organização refere no título que os deslocados internos em Moçambique cresceram 2700% em dois anos e que representam atualmente 1,4% da população do país – 424.002 pessoas de uma população total de 29 milhões.

O conflito armado em Cabo Delgado dura há três anos, provocando entre 1.000 e 2.000 mortos, e alguns dos ataques da insurgência têm sido reivindicados desde junho de 2019 pelo grupo ‘jihadista’ Estado Islâmico, sendo que a verdadeira origem da violência continua sob debate.

Este ano, as incursões e a ocupação de vilas durante alguns períodos agravaram-se.

A diplomacia da União Europeia (UE) garantiu na quarta-feira “acompanhar de forma próxima” a onda de violência em Cabo Delgado, indicando que elegerá em “próximos diálogos políticos” com o Governo moçambicano a ajuda a disponibilizar.