Rui Pinto é para José Miguel Júdice um “ladrão”. Um ladrão que o furtou “com grande violência moral e psicológica”. E um ladrão “mais grave” do que um ladrão que entra na casa de alguém. Ouvido esta terça-feira como testemunha naquela que é a 17.ª sessão do julgamento do Football Leaks, o antigo sócio fundador da sociedade de advogados PLMJ — cuja caixa de email terá sido acedida pelo alegado hacker — não esteve com meias medidas:
Soube que fui visitado por esse senhor, que só lhe posso chamar ladrão que, com grande violência moral e psicológica, veio furtar a minha propriedade”.
É que, na altura do ataque, em 2018, Júdice tinha “abandonado praticamente o papel” e tinha construído um verdadeiro “arquivo” no seu computador. “Toda a minha memória estava em suporte digital. Enquanto fui sócio da PLMJ, toda a informação e todos os documentos profissionais e pessoais estavam no servidor da PLMJ”, contou o advogado que exerceu advocacia entre 1975 e 2019. Mas não só: Júdice tinha também informações “mais íntimas”, os emails trocados com a sua mulher, as viagens que fez ou os hotéis que reservou. “Mesmo reações emotivas que, na vida, todos temos”, admitiu.
Júdice admitiu que não viu nenhum dos seus documentos publicados no Football Leaks ou em outros blogues, mas porque optou por se “afastar mentalmente” desse tema e não foi à procura por uma questão de “sanidade mental”. Ainda assim, não deixa de sentir que tem “uma espada sobre a cabeça” já que sente que a “qualquer momento” é “possível que várias documentos venham a aparecer“. “Por exemplo, em reação a este meu depoimento”, admitiu.
Rui Pinto continua em silêncio, pelo menos no julgamento. Já no Twitter, o alegado denunciado, tem vindo a deixar opiniões sobre alguns depoimento. Esta terça-feira, cerca de duas horas depois do final da sessão, Rui Pinto lembrou que Júdice “lidou durante décadas com ladrões, que lhe encheram a conta bancária através de honorários milionários, e nunca se queixou”. “Defende com unhas e dentes Ricardo Salgado dizendo que não é nenhum gangster. Acho um piadão a este ex-MDLP“, escreveu ainda.
José Miguel Júdice lidou durante décadas com ladrões, que lhe encheram a conta bancária através de honorários milionários, e nunca se queixou. Defende com unhas e dentes Ricardo Salgado dizendo que não é nenhum gangster. Acho um piadão a este ex-MDLP.https://t.co/HZuilyFoJm
— Rui Pinto (@RuiPinto_FL) October 27, 2020
Júdice pergunta a advogado de Rui Pinto se gostaria de ver a “comunicação” entre ambos divulgada — um “bom exemplo”, para a juíza
O advogado de defesa de Rui Pinto, Francisco Teixeira da Mota, insistiu em saber se Júdice não tinha vista nenhum dos seus documentos publicados. Mas o antigo sócio da PLMJ acabaria por desviar-se da pergunta e dar uma resposta que, no seu ponto de vista, o deixou “um bocadinho irritado”:
— Deu-me a honra de aceitar ser meu advogado no caso de uma queixa apresentada por um procurador. Certamente nem o doutor nem eu gostaríamos de ver a nossa comunicação divulgada
— Às vezes, não há nada como um bom exemplo — comentou a juíza Margarida Alves.
Júdice acabaria então por afirmar que não podia “admitir em circunstância alguma que um cidadão, ainda que fosse com aparentes motivos nobres”, fizesse “o que foi feito” consigo”. “É totalmente inadmissível do ponto de vista ético ou jurídico”, defendeu.
Se é certo que Júdice não poupou a críticas a Rui Pinto, também é verdade que o seu depoimento foi, em parte, ao encontro da defesa do arguido. É que o antigo sócio da PLMJ garantiu em tribunal que apesar de não ter “nenhuma pasta no computador onde estivesse escrito o nome Isabel dos Santos”, tinha tratado da defesa da “empresa de que ela era controladora” em processos de arbitragem. E este depoimento pode favorecer a defesa de Rui Pinto já que, na sua contestação, o alegado denunciante explicou que só acedeu ao sistema da PLMJ porque queria encontrar documentos relacionados com a empresária angolana para denunciar a prática de eventuais crimes.
Advogada ligada a Isabel dos Santos recusou dizer se tinha documentos sobre Luanda Leaks: “É um tema coberto por sigilo profissional”
Daí que o depoimento da advogada Inês Pinto da Costa fosse esperado, não só por ter representado empresas ligadas a Isabel dos Santos, mas porque é quem Rui Pinto acusa de ser uma das “peças chave no auxílio e otimização do branqueamento de capitais” da empresária angolana e “na elaboração de contratos lesivos para o Estado Angolano”, como se lê na sua contestação.
No entanto, Inês Pinto da Costa não quis dizer ao tribunal se tinha no seu computador ficheiros relacionados com o universo Luanda Leaks que possam ter sido acedidos por Rui Pinto. E justificou-se com o sigilo profissional para não responder à questão feita pela Procuradora da República, Marta Viegas.
Peço imensa desculpa, é um tema coberto por sigilo profissional”, disse apenas.
Sobre o alegado ataque de Rui Pinto, a advogada argumento que “enquanto profissional é uma violação de todos os princípios da profissão e enquanto pessoa é uma pura e simples violação”.
Também o advogado ouvido durante a manhã, Paulo Farinha Alves, recusou dizer se tinha ficheiros relacionados com o Luanda Leaks no seu computador, dizendo apenas: “Isso é matéria de sigilo profissional”. O advogado ligado à área do direito desportivo e por isso viu um dos seus emails no “circuito” do blogue Mercado do Benfica.
Pelo contrário, o advogado e ex-sócio da PLMJ João Magalhães Ramalho ouvido na sessão da manhã admitiu que pudesse ter documentos relacionados com o Luanda Leaks na sua caixa de email, alegadamente hackeada por Rui Pinto. Questionado pela juiz adjunta, Ana Paula Conceição, o advogado explicou que, como se dedicava à área de fiscal e era sócio da sociedade, todos os emails relacionados com direito fiscal eram reencaminhados para ele. Embora nunca tenha trabalhado diretamente com Isabel dos Santos, admite a existência de emails relacionados com a empresária angolana na sua caixa e mesmo que um dos documentos relacionados com Isabel dos Santos divulgados na comunicação pode ter saído do seu departamento.
Hei de ter na caixa vários emails dessa natureza. De certeza absoluta que há de haver emails sobre esses temas”, afirmou.
Ainda assim, João Magalhães Ramalho defendeu que “os meios não justificam os fins”.” Como cidadão não me agrada minimamente esse tipo de ambiente e operações que foram divulgadas”, disse em tribunal. Embora concorde que há crimes que não podem acontecer “nem no futebol, nem nas empresas”, concorda também que há “uma ponderação de valores” e que “não vale tudo”. “Se fosse assim, via uma pessoa na rua a roubar e dava-lhe um tiro”, disse.
Depoimento de Nuno Morais Sarmento atribulado. “É uma pena não termos ninguém aqui que perceba de informática”
Também o advogado Nuno Morais Sarmento garantiu que não tinha “nenhum assunto relacionado com futebol” no seu computador — o que o leva a concluir que o ataque “não tem a ver seguramente com isso”. E documentos relacionados com Luanda Leaks? “Também não. Não, nada, zero”, respondeu.
O tribunal esteve mais tempo a tentar estabelecer ligação por videochamada com Morais Sarmento do que propriamente a ouvi-lo. Apesar das instruções para se ligar ao Skype — que iam sendo dadas por telefone pelo seu advogado — as dificuldades eram evidentes. Tão evidentes que o juiz-adjunto Pedro Lucas acabaria por comentar, em jeito de brincadeira: “É uma pena não termos ninguém na sala que percebe de informática”.
Irritado, Bálint Bozó disse que não via Rui Pinto há quatro anos e que não pode depor por videochamada: não tem internet e não sabe mexer no WhatsApp
A sessão desta terça-feira foi a primeira de várias que servirão para ouvir os mais de 30 advogados da PLMJ cujas caixas de email terão sido acedidas. Esta terça-feira o tribunal ainda tentou ouvir Bálint Bozó, familiar dos senhorios de Rui Pinto, que se encontra na Hungria, mas sem sucesso. Por telefone, com recurso a uma tradutora, Bozó explicou que não tinha internet, nem sequer sabia mexer no WhatsApp.
A juiz presidente sugeriu até que a testemunha se deslocasse a um café ou ao posto da polícia onde pudesse ter internet, mas Bozó explicou que não há polícia na zona onde se encontra e que os agentes só lá passam uma vez por semana. Já irritado, o familiar dos senhorios de Rui Pinto acabou por dizer que não via Rui Pinto há quatro anos, questionando assim a utilidade do seu testemunho. A conversa durou mais de 15 minutos e levou a juiz presidente a optar por tentar contactar Bozó “por outra via”. “Não vale a pena estar a irritar-se“, disse à tradutora. Sentado no banco dos arguidos, Rui Pinto fazia um esforço visível para ouvir a tradutora a falar em húngaro.
Rui Pinto, o principal arguido, responde por 90 crimes — todos relacionados com o facto de ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol, à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra ou o advogado José Miguel Júdice. São, assim 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.
Aníbal Pinto, o seu advogado à data dos alegados crimes, responde pelo crime de tentativa de extorsão. Isto porque, segundo a investigação, Rui Pinto terá exigido à Doyen um pagamento entre 500 mil e um milhão de euros para que não publicasse documentos relacionados com a sociedade que celebra contratos com clubes de futebol a nível mundial. Aníbal Pinto, então advogado do hacker, terá servido de seu intermediário. E é por isso que se sentam os dois, lado a lado, em frente ao coletivo de juízes.
O alegado pirata informático esteve em prisão preventiva desde 22 de março de 2019 e foi colocado em prisão domiciliária a 8 de abril deste ano, numa casa disponibilizada pela PJ. Na sequência de um requerimento apresentado pela defesa do arguido, a juiz Margarida Alves, presidente do coletivo de juízes — que está a julgar Rui Pinto e que tem como adjuntos os juízes Ana Paula Conceição e Pedro Lucas — decidiu colocá-lo em liberdade. O alegado pirata informático deixou as instalações da PJ no início de agosto e a sua morada atual é desconhecida.