Não é traficante de droga, embora tivesse droga quando foi detido em setembro e 2017, não tem qualquer ligação a organizações terroristas e só fez o assalto a Tancos com dois dos restantes sete arguidos que o Ministério Público acusa de terem entrado com eles nos Paióis Nacionais de Tancos. Foram estas as revelações de João Paulino, aquele que é visto como o cérebro do roubo do século, esta terça-feira no Tribunal de Santarém que — no caso onde também está a ser julgado o ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes.
“Quero esclarecer toda a verdade, há muita coisa mal contada”, afirmou no Tribunal de Santarém. “Quero que fique bem claro, quero virar esta página na minha vida e pôr tudo atrás das costas. Isto nunca teve a ver com nenhum grupo terrorista. Nunca tive nenhum ligação com a ETA”, disse depos.
O antigo fuzileiro recusou, como conta a acusação, ser traficante de droga — embora tenha sido consumidor de cocaína e de haxixe — e ter vários contactos que lhe vendiam a droga, com os restantes arguidos no processo. No entanto, assumiu, no dia em que se preparava para vender droga a um conhecido, a PJ tocou-lhe à campainha e foi detido.
Nesse dia o arguido tinha cerca de 60 gramas de cocaína em casa, o que equivale a 207 doses, que diz que era “para consumo e para amigos meus, para festas, não tinha nada a ver com venda”. “Depois do furto andei um bocadinho mais stressado, não andei com o norte acertado”, confessa. Tinha também haxixe, e esse sim era para vender: 1o placas de haxixe, perto de 1 quilo de peso.
— Mesmo assim 207 doses é muito, diz o juiz presidente Nelson Barra
— Não sei como são essas contas. Uma dose é uma grama por isso eram 60 doses, responde.
Não é traficante de droga e assaltou os Paióis só com dois amigos, e não sete
O juiz passou depois para o assalto a Tancos. E João Paulino explicou como soube por Valter, o arguido ouvido no dia anterior, das fragilidades de Tancos. Foi essa informação que viria a transmitir dias depois a Paulo Lemos, mais conhecido por Fechaduras — o homem que acabaria por denunciar o plano à polícia e por não ser acusado no processo. E, nas palavras de Paulino, terá sido ele a dar força à ideia de assaltar os Paióis Nacionais de Tancos.
Teve a ideia mas, depois, acabou por desistir. E, segundo o depoimento, afinal os únicos que fizeram o roubo foram ele e os amigos João e Hugo, também arguidos no processo, a quem prometeu mil euros a cada um. Valter só falou das condições de Tancos, e o seu então sócio num bar de Ansião, Fernando, Laranjinha e Gabriel chegaram a fazer um reconhecimento da zona com ela, mas não acharam boa ideia avançar com o crime.
O arguido descreveu como entrou nos Paióis Nacionais de Tancos com o amigo João, conhecido por Caveirinha, e como carregou o que conseguiram de dois paióis. “Não dava para ver bem o que estávamos a carregar. Eram muitas caixas assim muito extensas. Estava escuro”, recorda.
— Mas já ia com a informação do que havia no interior?, pergunta o juiz
— Já fui militar e sei que um paiol não tem la ramos de rosas nem chupa chupas, responde
Antes de Paulino, a GNR
Ao segundo dia do julgamento do caso do assalto a Tancos, antes de Paulino, foi a vez de o tenente-coronel, Luís Sequeira, ser ouvido pelo tribunal. O oficial da GNR foi constituído arguido em abril de 2019, depois de ter prestado declarações na comissão parlamentar de inquérito ao furto e à recuperação das armas de guerra furtados. É acusado de ter permitido que seus os militares da GNR de Faro colaborassem com a investigação da Polícia Judiciária Militar (PJM), quando a investigação ao caso tinha sido atribuída pelo Ministério Público à Polícia Judiciária civil.
Luís Sequeira lembra-se que em agosto de 2017, e não em julho como diz a acusação do Ministério Público, segundo ele, recebeu um contacto de um superior da GNR a dizer que a PJM precisava da colaboração do Núcleo de Investigação Criminal de Loulé.
“Na altura não estranhou as circunstâncias?”, perguntou-lhe o juiz presidente Nelson Barra. O magistrado queria saber se o oficial da GNR responsável pela Investigação Criminal de Faro não sabia que a investigação estava nas mãos da PJ civil e se não estranhou ser apenas contactado pela PJM.
“A perceção que tínhamos na altura não é esta. Não tive presente o despacho da procuradora do Ministério Publico, mas a impressão que tinha é que independentemente da PJ civil ter a investigação, a PJM colaborava”, justificou. “Não foi feito um pedido para uma investigação paralela”.
“Não me percebi na comunicação social do despacho da Procuradora Geral da República e não me espanta que a PJM tenha uma ação nesta situação, porque é uma instituição militar, ainda que a investigação esteja noutra força, a PJM não estaria afastada da investigação”, respondeu ao juiz, quando este o lembrou que a atribuição da investigação à PJ civil foi “amplamente” noticiada.
O tenente-coronel explicou que esse apoio “consistia em abordar o informador para recolher informações que podiam levar à localização do material apreendido nos Paióis Nacionais de Tancos”. E que, por isso, não emitiu qualquer guia de marcha — um documento que justifica ser emitido apenas em deslocações que impliquem uma despesa.
O arguido falou ainda da reunião que manteve com a hierarquia da GNR, em Lisboa, já depois de recuperadas as armas de Tancos e de ter sido emitido um comunicado pela PJM que referia a participação da Guarda. Luís Sequeira confessa que até estranhou o facto de se falar numa chamada anónima, quando na verdade a informação da localização das armas teria partido de um informador — com quem ele autorizou os seus militares a falar.
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Uma chamada anónima ou um informador?
“Não pus os pontos nos is, se eles estavam a trabalhar com um informador, não tinha sido uma chamada anónima”, acabou por dizer. “Fiquei na expectativa que a PJM sabia o que estava a fazer e o que ia fazer para clarificar este aspeto”. “Não me senti a pessoa ideal para desmontar essa situação”, sustentou.
O advogado do major Brazão, Ricardo Sá Fernandes, aproveitou então para perguntar-lhe se esta não era, afinal, uma prática comum nas investigações: obter informações de informadores e não registar a sua existência no processo. “Sim, sim, doutor, as bolas de cristal não há”, afirmou. O militar afirma mesmo que muitas das notícias que surgem na comunicação social, sobretudo de tráfico de droga, quando falam em flagrante delito na verdade foram conseguidas através de informadores. “Há países em que existem budget para isso”, afirma.
Apesar de o coletivo de juízes do Tribunal de Santarém estar a ouvir primeiro os dez arguidos envolvidos no assalto a Tancos e só depois os restantes 13 arguidos — os militares da Polícia Judiciária Militar e da GNR e o ex-ministro da Defesa no final acusados pela investigação e operação que levou à recuperação de armas –, esta terça-feira vai ser ouvido o oficial da GNR do Algarve responsável pela Investigação Criminal.
Luís Sequeira é acusado de associação criminosa, tráfico e mediação de armas, falsificação e ou contrafação de documento, denegação de justiça e prevaricação, favorecimento pessoal por funcionário, crime de falsificação ou contrafação de documento em coautoria e outro crime de falsificação ou contrafação de documento sozinho. E depois de o juiz presidente Nelson Barra perguntar a todos os arguido se alguém estaria disponível para ser inquirido esta manhã, foi o único que se ofereceu.