Quando estava a esconder numa herdade de família, em Penela, o material de guerra que acabava de furtar em Tancos, João Paulino ainda abriu uma caixa para ver o que lá estava. Percebeu logo que o que tinha ali não era o que pensava que ia encontrar, mas sim “material perigosíssimo”, como descreveu esta quinta-feira em tribunal. Os dias seguintes foram de notícias sobre o crime e no bar que explorava em Ansião era frequente ouvir os comentários dos clientes. Começou a perceber que as pessoas tinham medo que houvesse um ataque terrorista com aquelas armas e o arrependimento começou a tomar conta dele.

“Fiquei muito nervoso, entrei uma depressão, dormia mal, queria resolver da maneira melhor possível”, disse no tribunal de Santarém naquele que foi o seu segundo dia de depoimento. Então telefonou ao arguido João Pais, que entrou com ele no quartel militar, e disse-lhe que tinham que devolver o material. O fuzileiro afirmou por várias vezes que a sua confissão servia para tirar “um peso das costas” e que só estar a falar no que aconteceu, naqueles anos de 2017 e de 2018 o deixavam “mais aliviado”. Sentimento que não foi partilhado por todos os restantes 23 arguidos sentados atrás de si que o ouviam atentamente.

“Eu sei que isto não está nas minhas mãos, está nas vossas. Eu sou o principal responsável, se pudessem responsabilizar-me só a mim e absolverem os outros eu escolhia, isso. Eu sou o principal responsável”, disse.

Um dos arguidos que não pareceu respirar de alívio foi Bruno Ataíde, ao serviço da GNR de Loulé, que em alguns momentos que ouviu o arguido chegou a abanar a cabeça em jeito de reprovação. O cérebro do assalto a Tancos contou em tribunal que Ataíde era seu amigo de infância desde os 5 anos. As mães trabalharam juntas quase 20 anos. Só na escola secundária, em Albufeira, é que se juntaram a grupos de amigos diferentes.

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Na sua versão do que aconteceu, terá sido no verão de 2017 que Ataíde o contactou na tentativa de saber mais sobre Paulo Lemos, conhecido por Fechaduras — que chegou a ser arguido no processo e que denunciou o plano do crime à PJ civil (numa queixa que não assinou e que não chegou a ser investigada).

A acusação do Ministério Público diz que foi “Nando”, que vivia com Fechaduras, que o avisou de que Ataíde andava atrás dos autores do assalto a Tancos. Mas Paulino garante que não. Que o militar amigo de infância lhe ligou diretamente e que ele, com peso na consciência, acabou por partilhar com ele que tinha informações sobre isso.

Foram vários os encontros com o militar, alguns em Albufeira, outros em Pombal. “Nem todos estão na acusação”, afirma Paulino. Ataíde tê-lo-á convencido, então, a falar com o seu chefe, o sargento Lima Santos, e a certa altura Paulino começou a ter encontros secretos com os dois. Sempre em locais isolados, dentro do carro deles. Paulino garante que nunca lhes disse que foi ele que fez o assalto e como o fez, mas que garantiu sempre que “estava envolvido” e que sabia onde estavam as armas. Problema: “tinha muito medo de ser preso”.

As negociações foram decorrendo com os militares a convencê-lo, garante Paulino, que se entregasse as armas não seria preso. “Mas prometeram-lhe isso?”, questionou a certa altura o juiz. “Sim”, respondeu o arguido. Os advogados e o próprio juiz, Nelson Barra, perguntaram-lhe se nunca lhe disseram que podia ser eventualmente chamado ao processo. Ele acabou por admitir que que sim, mas não como arguido.

Como um ex-fuzileiro planeou o assalto a Tancos. E se arrependeu de seguida

A certa altura houve mesmo quem lhe perguntasse se agiu como um informador. Mas Paulino recusou, embora tenha lembrado mais que uma vez que o próprio Fechaduras já tinha passado “impune” de vários crimes, apesar de ter sido condenado por outros, e que julgou que lhe pudesse acontecer o mesmo a ele.

Eu não disse eu sou o ladrão de Tancos, disse-lhe que estava envolvido”, esclareceu Paulino.

João Paulino percebeu também que os dois militares da GNR estavam sob grande pressão dos seus superiores. Que reuniam várias vezes com a Polícia Judiciária Militar, em Lisboa, e que estes lhes davam instruções. Mas que recusou sempre reunir com eles. A certa altura, para que sentisse confiança, os militares disseram-lhe mesmo que o caso estava a ser acompanhada ao “mais alto nível”, chegando mesmo ao ministro da Defesa.

Quando diz que estava a ser seguido ao mais alto nível era em termos hierárquicos?, perguntou o juiz

Sim, respondeu o arguido

Mas queriam dizer que o ministro da Defesa que ele tinha conhecimento?

Sim. Sim, respondeu Paulino.

O ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes, estava sentado no banco dos réus e ia tirando notas.

Já à tarde o advogado de Azeredo Lopes confrontou o arguido com esta afirmação, considerando mesmo que a comunicação social tinha entendido mal o que tinha afirmado. Afinal o que lhe tinham dito os militares Bruno Ataíde e Lima Santos?

“Que o ministro da Defesa estava a acompanhar este processo, se estava ou não não posso garantir que nunca tive nenhum contacto com ele”, respondeu.

No dia em que finalmente decidiu entregar as armas, Paulino conta que decidiu escondê-las num local mais a sul, junto à linha do rio, na Chamusca. Desenhou num papel o percurso com as orientações e entregou-o a Lima Santos, depois de se encontrar com ele numa rotunda perto de Tomar. “Marquei num papel: atravessar a Golegã, passar a Chamusca, depois fiz umas setinhas para chegarem à linha de água”.

Confessa que não foi sozinho devolver as armas, levou alguém que não quer identificar (assim como não quis identificar quem lhe emprestou a carrinha com a qual cometeu o assalto e quem foi que lhe pediu para comprar a droga que a polícia lhe apreendeu quando foi detido).

Dia 2 de Tancos. “Já fui militar e sei que um paiol não tem lá ramos de rosas nem chupa chupas”, diz Paulino

Estava uma noite chuvosa, aquela de outubro de 2017, o local onde escondeu as armas estava molhado. A PJM terá aparecido logo depois. Só quando regressou a casa, recorda, percebeu que afinal não tinha entregado as armas todas. “Eu entreguei tudo, quando vi nos dias seguintes as coisas a mais e coisas a menos pensei que havia uma confusão. Dias depois fui ao local e ainda tinha coisas. Foi por engano”. Um erro que só solucionou três anos depois, a semanas de arrancar este julgamento — quando decidiu devolver o material que mantinha escondido.

“Tinha sido mais fácil para mim mandar aquilo para uma barragem ou para o rio, era mais fácil e não estávamos aqui a falar”, disse Paulino.

Uma das juízas ainda lhe perguntou se não entregou apenas o material menos comercializável.  “Se calhar está equivocada. As coisas que devolvi agora a segunda vez eram as mais comercializáveis. Eu devolvi coisas que não estão sequer no inventario”, afirmou, lembrando que não se aproveitou disso.

Paulino ainda estranhou nos dias seguintes à recuperação das armas o comunicado da polícia que falava numa chamada anónima, que nunca tinha feito. Depois apercebeu-se dos problemas entre a Polícia Judiciária Militar e a civil. Mas manteve-se em silêncio, achando que o segredo que agora guardava nunca seria revelado.

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Só contou ao seu advogado Carlos Melo Alves que ainda tinha parte das armas depois da acusação, há pouco mais de um ano. Aos jornalistas, o advogado escudou-se no segredo profissional e na sua estratégia de defesa para explicar porque só agora devolveu o material de guerra.

O julgamento prossegue segunda e terça-feira com a inquirição dos restantes arguidos acusados do assalto. Na quinta-feira começam a ser inquiridos os militares da Polícia Judiciária Militar.

*(título do artigo alterado a 10 de novembro de 2020)