Nos últimos tempos o mundo tornou-se um lugar estranho, concordará a maior parte de nós. Mas ainda há coisas capazes de nos surpreender. Como o momento em que Patti Smith, ícone punk, partilha no Instagram que um dos seus maiores prazeres noturnos é ver séries de detetives num televisor de 15 polegadas.
Como se a imagem da Nova Iorque underground dos anos 70 aninhada frente ao “CSI Miami” não bastasse, no fim-de-semana passado, Smith, de 73 anos, partilhou com os seus 800 mil seguidores uma nova e assolapada paixão televisiva. “Um redemoinho sedutor de loucura e génio, comprimidos e xadrez”, escreveu. E informava: passaria a noite de Halloween a beber descafeinado e a ver tudo de novo. Hashtag Netflix. Hashtag Anya Taylor Joy.
Na imagem, uma miúda ruiva, de franja, olhar frio e inquietante, iluminava um pequeno televisor preto naquilo que se adivinha ser a sala de Patti Smith, uma divisão alumiada por uma luz vermelha. Uma matrioska de sentidos, a condizer com a série, logo a começar pelo título, que a maior parte de nós terá de googlar para entender: “Gâmbito de Dama.”
[o trailer de “Gambito de Dama”:]
https://www.youtube.com/watch?v=IFuvkfimAso&t=1s
A mesma busca dir-lhe-á que a série afinal é uma mini-série de sete episódios que se estreou no fim de Outubro e pulou de imediato para as mais vistas da Netflix. Acrescentará que o agregador de críticas Rotten Tomatoes lhe dá uns inusitados 100% de aprovação. Estranhamente, nada consta na Internet sobre eventuais diferendos internos entre argumentistas e produtores em torno de um título demasiado difícil para ser comercial e que há uns anos não teria resistido a uma tradução portuguesa do género “Xeque-Mate” ou “Xadrez sob pressão”.
Gambito de Dama (ou Rainha) é uma das mais conhecidas aberturas do xadrez. “Gambito” designa um lance em que se sacrifica uma peça para causar maior dano ao adversário. Já a “Dama”, além de ser a peça mais poderosa do jogo, alude à protagonista da série, uma órfã que se revela um prodígio e que terá de vingar num mundo de homens enquanto se debate com os seus próprios demónios. Posto desta forma, quase podia ser uma história de super-heróis, que não é, embora um dos argumentistas, Scott Frank, tenha feito carreira no género, em filmes como “Logan” e “Wolverine”.
A mini-série baseia-se num romance de Walter Tevis, autor de livros como “The Hustler” e “The Color of Money”, também eles adaptados ao cinema. Não datasse o livro de 1983 e “Gambito de Dama” poderia parecer, tal como tantas outras séries de plataformas de streaming, um produto do algoritmo. A saber: feminismo, saúde mental e dramas de época a piscar o olho à nostalgia. E são magníficos os cenários e o guarda-roupa das décadas de 1950 e, sobretudo, 1960. Já o xadrez seria mais difícil de explicar, mas provaria que é a disrupção que nos agarra ao ecrã.
A dada altura, quando lhe perguntam o que a seduz no xadrez, Elizabeth Harmon, a personagem principal, explica que é o tabuleiro. Naqueles 64 quadrados cabe o mundo inteiro. Um mundo que ela controla e onde se sente segura. É também no fascínio que se gera em torno do jogo que reside o fator aditivo deste “Gambito de Dama”. É extraordinário como conseguimos vibrar com um desporto puramente intelectual, de que não percebemos a maior parte das subtilezas. Especialistas de todo o mundo já vieram dizer que é dos mais fidedignos retratos da modalidade e todas as suas nuances. Todos os jogos foram desenhados por aquele que é considerado o melhor treinador de xadrez dos EUA, Bruce Pandolfini, e pelo antigo campeão mundial Garry Kasparov. Mas se não fossem a expressão e a energia da magnética Anya Taylor Joy, de apenas 24 anos, nada disto transpareceria. Com formação em ballet, explicou ter trabalhado cada lance como se fosse um passe de dança.
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▲ A xadrezista interpretada por Anya Taylor Joy é um génio que se distingue tanto pela memória e pela inteligência, como pela criatividade e atração pelo abismo
Numa história de xadrez, drogas e bela banda-sonora, Beth vai-se afirmando como anti-heroína, uma formulação que só resulta estranha porque costuma ser feita no masculino. A xadrezista é um génio que se distingue tanto pela memória e pela inteligência, como pela criatividade e atração pelo abismo. Entre o filme biográfico e a “coming of age novel”, “Gâmbito de Dama” começa a arrastar-se a partir da metade, malgrado os deuses do ritmo e da atracção. A dada altura escorrega por alguns clichés das novelas. Questionamos os 100% no Rotten Tomatoes, apenas para nos lembrarmos que é “apenas” a Internet – e que na verdade se trata de um rating de aprovação, ou seja, definido apenas por um gosto ou não gosto. A série redime-se no último episódio, todo ele um hino à saudosa tensão dos thrillers da Guerra Fria.
Sabe-se agora que há pouco mais de dez anos também Heath Ledger quis adaptar o livro de Tevis. Chegou a escrever o guião. Seria ele a realizá-lo, fazendo desta a sua obra mais pessoal. Talvez o tenha atraído o mesmo que falou fundo a Patti Smith, ambos gente maior que a vida que sabe o que é viver com fantasmas e nunca se libertou da solidão. Na série, será esse o grande desafio de Beth Harmon. Mais do que superar os mestres do xadrez, superar-se a si própria. Pelo caminho, vai fazendo companhia a outros que tais, mesmo que através de uma plataforma de streaming, em televisores de 15 polegadas, durante a noite de Halloween. Ou como escreveu Smith no Instagram, que cultiva como espaço de diário e manifesto, “Sim, foi um escape, o meu tipo de escape.”