O sobrenome destrona qualquer dúvida, apesar de não falar a língua do pai, que no final dos anos 60 se despediu de Aljustrel rumo a França. A conversa, por email, segue o idioma aprendido em Argenteuil, o subúrbio de Paris onde Mathieu da Vinha nasceu, a 15 de março de 1976, já a liberdade havia sido restaurada no retângulo que visitaria regularmente até aos 20 anos, para dois meses de férias junto da avó e dos tios.
O fascínio por um dos mais imponentes complexos arquitetónicos monárquicos na Europa vem quase dos cueiros. O historiador que passou as últimas décadas a estudar a vida e obra de Luís XIV visitou Versalhes pela primeira vez com três anos. Em 2004, estreava-se em funções no palácio que funcionou como residência real entre 1682 e 1789. Desde 2009, desempenha as funções de diretor científico do Centro de Pesquisa do monumento que, como tantos outros, se vê despido de turistas por causa da pandemia, num raro êxodo que silenciou os luxuriantes jardins e os faustosos interiores. “Na história, Versalhes viveu muito poucos períodos comparáveis, além dos dias de 5 e 6 de outubro de 1789 que viram o palácio esvaziar-se rapidamente sem saber se ele continuaria a existir”. Em abril, a partir de casa, e via YouTube, Mathieu da Vinha falava ao público sobre a higiene na corte, uma breve aula em tempos marcados pelo (primeiro) confinamento, a que outra, provavelmente, se seguirão.
Consultor da série televisiva “Versalhes”, Da Vinha colaborou agora com a editora Assouline, que acaba de lançar uma obra de peso. “Versalhes: de Luís XIV a Jeff Koons” reflete a exuberância deste destino que começou com uma modestíssima proposta para um pavilhão de caça durante o reinado de Luís XIII, corria o ano de 1623, que se materializou num símbolo do poder absoluto, e que acabaria adotado pela República, fiel a uma vocação sem prazo de validade, a de “farol para a nação francesa”, confia o investigador.
Profusamente ilustrada com imagens de arquivo e fotografias, a edição (com 234 páginas e apenas disponível em língua inglesa) inclui textos de Catherine Pégard, presidente do Palácio de Versalhes.
Recuando ao princípio: como começou a sua relação com Versalhes? Recorda-se da primeira visita?
Vim pela primeira vez a Versalhes em 1979, com três anos. Vim com os meus pais, a minha irmã e uns amigos britânicos que estavam de visita a França. É claro que a única memória que tenho é a das fotos, onde apareço empoleirado nas cavalitas da amiga galesa da minha mãe. Assim que cheguei a Versalhes para trabalhar, em 2004, fiz questão de trazer as fotos dos meus pais para não me esquecer que era um sonho de infância que se tinha realizado. Não queria que me subisse à cabeça estando num lugar tão majestoso como este.
Depois dessa visita inicial, como foi crescendo esse sonho?
Tinha oito anos, andava na terceira classe, e um professor falou-nos de Luís XIV e de Versalhes. Fiquei apaixonado. Foi a partir daí que comecei a ler pequenas obras sobre aquela figura e comecei a vir regularmente a Versalhes. Quando cheguei aqui foi portanto uma espécie de culminar. Em cada visita era um encanto descobrir este lugar tão incrível. Sentimo-nos atordoados quando descobrimos cada peça. Mas mais do que o lugar, aquilo que me fascinava e continua a fascinar é imaginar a vida das pessoas que aqui se desenrolava.
Viajando no tempo, agora na linha da sua vida, fale-me dessas raizes portuguesas.
O meu pai é português. É um alentejano de Aljustrel que deixou o seu país natal por razões políticas (durante a ditadura de Salazar), em 1968, e veio para França. Conheceu a minha mãe no começo dos anos 70, casaram-se e tiveram a minha irmã em fevereiro de 1974. Depois da Revolução dos Cravos puderam ir a Portugal, para que o meu pai pudesse rever toda a família e apresentar a minha irmã. Infelizmente o meu avô morreu em 1972 sem que se voltassem a ver. Desde que nasci, passámos a ir os quatro a Portugal a cada dois anos. Eu e a minha irmã aí passávamos dois meses no verão. O mês de julho sem os nossos pais, com a nossa avó e os nossos tios, e depois em agosto os meus pais juntavam-se a nós. Isso durou até ter quase 20 anos, quando comecei a estar mais preso por causa dos estudos.
E depois dessa fase conseguiu ir mantendo contacto?
Voltei duas vezes em 2008, em trabalho e para passar 15 dias no verão, isto antes de aí passar três dias em 2010 para o casamento de uma prima. Infelizmente nunca mais voltei, o que lamento. Entretanto, o meu filho pede-me há vários anos para ir a Portugal para descobrir o país do seu avô. Espero poder levar os meus filhos e a minha mulher no próximo verão, para ver a família depois deste tempo todo…
Voltando ao presente e a Versalhes. Há variadíssimos livros sobre o tema. O que torna especial esta obra da Assouline?
Realmente há vários livros sobre Versalhes, e muitos outros serão escritos. Este é uma verdadeira obra de arte. Quando a presidente me propôs participar desta aventura, aceitei de imediato e agradeci-lhe publicamente essa confiança, porque conheço a qualidade das edições Assouline. O objeto do livro é magnífico por natureza, o resultado não podia ser outro que esta obra de arte. E confesso não ter ficado dececionado mas sim ainda mais impressionado com o resultado quando vi o livro acabado. É um convite para viajar através do tempo e da beleza com fotos esplêndidas, do arquivo dos nossos fotógrafos (Thomas Garnier, Christophe Fouin, Christian Milet, etc.) mas também dos maiores artistas que fotografaram com paixão este lugar único (René Polidori, Jean-Baptiste Leroux, etc.). O livro tem um formato extraordinário que permite que se veja as fotos como nunca se viu antes, captando o grão da ilustração, para oferecer um detalhe inesperado. É também o resultado de uma obra à moda antiga com ilustrações coladas à mão, o que também dá a impressão de que se possui um objeto de arte em casa.
A obra foi concebida em fase de pandemia, e com eventuais restrições associadas, ou já estava pronta para sair?
A atmosfera em que o trabalho foi feito foi excecional. Apesar das dificuldades relacionadas com as condições sanitárias globais, a comunicação entre Nova York, onde se encontra a equipa editorial de Assouline; Versalhes, onde Catherine Pégard e a diretora editorial do castelo estavam localizadas; e Paris onde eu estava confinado, tudo correu perfeitamente mesmo que houvesse momentos de stress para realizar o projeto. O trabalho permitiu-me conhecer muito bem Martine e Prosper Assouline, bem como suas equipas, com quem gostei de trabalhar. Quanto a Catherine Pégard, este projeto conjunto só confirmou todo o prazer que tenho em trabalhar com ela diariamente em Versalhes.
Vamos a esse quotidiano em Versalhes, e todos estes anos de estudo. Que mais o surpreendeu até agora nas suas leituras e descobertas? Acredito que esse efeito surpresa não esteja fechado.
Sem dúvida que não conheço todos os objetos e história do palácio. Comecei a trabalhar seriamente em Luís XIV e em Versalhes em 1997 para a minha pós-graduação, depois mestrado, e então doutoramento na Sorbonne, em 2003. No início da minha tese tive a oportunidade de conhecer Béatrix Saule, que se havia tornado diretora do Palácio de Versalhes. Foi ela que me abriu as portas e em 1999 me permitiu mover-me livremente no palácio para descobrir todos os cantos e recantos. Nunca esquecerei o que me disse na época, que se conhecemos o palácio pelos livros, conhecemo-lo sobretudo pelos nossos pés. E é verdade! O palácio é enorme e caminha-se muito.
O que ainda hoje me surpreende é descobrir o jogo de luz na pedra, nas salas através das janelas e o pôr do sol na Grande Galeria vai sempre fascinar-me. Por outro lado, nos meus estudos, o que me surpreendeu mais foi a abundância de fontes que se possui sobre o palácio e que ainda precisam de ser descobertas ou reinterpretadas.
Temos a impressão que o tema é inesgotável. Apesar de aspetos como o que acabou de referir, que mostram que o trabalho está sempre por completar, acredita que conhecemos o essencial ou ainda há margem para a surpresa?
Versalhes continua a ser um assunto inesgotável, pois o palácio abrange muitas disciplinas: a arquitetura, obviamente, dada a construção gigantesca do lugar; a história da arte, com os tesouros que contém; a história com todas as suas variantes (social, económica, etc.); a musicologia, literatura, etc. São todas essas disciplinas que o Centro de Pesquisa do Palácio de Versalhes tenta abraçar com os seus programas. Por exemplo, neste momento estamos a investigar as redes do tribunal de Versalhes, a fim de determinar todos os titulares do tribunal e as principais famílias detentoras do poder. Da mesma forma, lançámos um programa sobre o “mito” de Versalhes na Europa e sua suposta influência (arquitetónica, social, etc.) nos vários palácios da Europa. Analisando as fontes, percebemos que Versalhes aparece mais como uma exceção do que como modelo… Além dessas várias pesquisas fundamentais e conceptuais ainda há muito por descobrir sobre a vida quotidiana e económica do próprio palácio.
Falou do contexto europeu. O que é que uma obra como Versalhes representa atualmente e que se desafios se lhe colocam no futuro?
Versalhes continua a ser um farol para a nação francesa. Depois de incarnar a monarquia francesa absoluta, o palácio experimentou várias vocações que se seguiram e até se cruzaram. Após a partida da corte em 1789, o destino do castelo era incerto e foi Luís Filipe, “rei dos franceses” e não mais “rei da França”, quem lhe devolveu vida, erguendo um museu dedicado a “todas as glórias da França”, que abriu suas portas em 1837. Este aspeto foi apagado no final do século XIX para manter ao gosto dos tempos a residência dos governantes da antiga monarquia francesa.
Ao mesmo tempo, após a queda do Segundo Império em 1870 e o nascimento da Terceira República, Versalhes tornou-se o lugar do Parlamento francês. Uma Câmara que poderia acomodar tanto o Senado quanto a Assembleia Nacional foi construída em 1876 permitindo que senadores e deputados se reunissem para eleger o presidente da República até o final da Quarta República (1958), mas também para rever a Constituição francesa, que ainda é o caso até hoje. Versalhes tornou-se, assim, o símbolo da República depois de ter sido o da monarquia, uma vez que é hoje um palácio nacional onde o Presidente da República geralmente intervém uma vez por ano para se dirigir ao Parlamento.
Poderá ser impossível isolá-lo do enquadramento político mas está longe de ficar isolado no passado?
Para lá das considerações políticas, Versalhes pertence à história dos franceses e, com as suas diferentes coleções, Victor Hugo sublinha que o sucesso de Luís Filipe é “ter dado a este livro magnífico a que chamamos história de França, este magnífico catálogo a que chamamos Versalhes”. Tendo uma funções de memória, Versalhes está plenamente inscrito no presente. Como dizia, podemos falar de todas as disciplinas e artes. Versalhes não deixou adormecer as suas coleções e propõe uma oferta de projetos digitais, virtuais, de podcasts, etc, que interpelam o mundo de hoje e talvez até de uma forma lúdica.
Dedicou várias obras de investigação a Luís XIV, uma figura inseparável de Versalhes. Que mais o impressiona na sua história?
“Encontrei” este homem quando tinha oito anos. Quando percebi tudo o que fizera, pensei “uau, que homem!”. Fiquei totalmente siderado pela personagem: tornou-se rei aos quatro anos e meio, teve um reinado de 72, travou guerras sem fim, e acima de tudo Versalhes. Comecei a interessar-me muito pelo seu reinado e pela sua vida. O que mais me cativa hoje é entender como um homem foi capaz de estabelecer um sistema curial que milhares de pessoas aplicaram e passaram a seguir diariamente em Versalhes. Além do rei, é acima de tudo o sistema curial e as interações entre o soberano e seus cortesãos que me desafiam. É toda essa mecânica que estou tentar entender e saber se houve uma submissão voluntária ou não por parte dos cortesãos.
Falámos da conceção deste livro em plena pandemia, Versalhes, à semelhança de muitos outros monumentos que são visitados por milhares todos os anos, também se esvaziou e volta agora a esvaziar-se de novo. Que paralelo para este silêncio destacaria no trajeto de Versalhes?
É verdade que o palácio está bem silencioso nesta altura, mas isso não significa que esteja morto! Aproveitamos para fazer um trabalho que normalmente não podemos fazer com os milhares de turistas que recebemos diariamente e todos os serviços do palácio estão mais do que nunca mobilizados para fazê-lo viver de forma diferente. Na história, Versalhes viveu muito poucos períodos comparáveis, além dos dias de 5 e 6 de outubro de 1789 que viram o palácio esvaziar-se rapidamente sem saber se ele continuaria a existir. Da mesma forma, durante a Primeira e Segunda Guerras Mundiais, Versalhes fechou para abrigar as obras de arte. Esses encerramentos, no entanto, nunca duraram muito tempo e rapidamente reabriram para receber os seus visitantes. Isso é o que todos hoje esperamos.