Se o novo confinamento o está a deixar aborrecido de morte, tenho uma sugestão: arranjar uns patins, uns headphones, escolher um clássico pop dos anos 80 e zarpar pela casa fora. Não? O seu T2 não se coaduna com este programa? É que resultou lindamente com a Diana Spencer, semanas antes de se ter tornado oficialmente Princesa de Gales. Bom, “lindamente” talvez seja um exagero. Diana não estava propriamente feliz.
Esta é uma das cenas visualmente mais impactantes da quarta temporada de “The Crown”, disponível a partir deste domingo (dia 15) na Netflix. Na sua própria espécie de confinamento forçado, fechada numa ala de uma casa real que ainda não é a sua, à espera que o Príncipe Carlos regresse de uma viagem de seis semanas para se casar com ela, Diana demonstra que é ainda uma rapariga normal de vinte anos: de headphones, a ouvir “Girls On Film” dos Duran Duran aos berros e a patinar pelas pinturas a óleo e os veludos centenários do Palácio de Buckingham. Pelo meio, um curso intensivo de como se tornar realeza, que vai da História ao protocolo, com especial enfoque no “aprender o que dizer”. É uma gaiola dourada tão palpável que está para lá da metáfora.
Nesta quarta temporada, “The Crown” chega a um período histórico tão apetecível como ingrato. Atravessamos a totalidade da década de 80 (começamos em 1979, acabamos em 1990), uma época amplamente documentada e da qual muito do público desta série tem memórias vividas e concretas. Alguns dos momentos da série são reconstituições de conferências de imprensa ou de imagens de paparazzi que fazem parte da nossa iconografia. Qualquer deslize, fosse por incorreção ou por resvalar para o cartoonesco, seria notório.
Mas a série original da Netflix já há muito nos habituou à precisão e à atenção do detalhe e não deixou cair essa bola. Pelo contrário: fez malabarismos com ela. Naquela que é talvez a melhor temporada de um drama já amplamente consagrado, “The Crown” está em pico de forma em todas as suas vertentes, da realização ao guião, passando pelo casting. A quase estreante Emma Corrin desempenha uma Diana perfeita na sua transformação de introvertida a Princesa do Povo; e Gillian Anderson consegue a proeza de fazer uma Margaret Thatcher imediatamente reconhecível, mas sem cair na paródia estilo “Contra Informação”.
Diana e Thatcher obrigam, assim, a própria Rainha Isabel II a repartir o protagonismo – não só na série, como na vida real. Basta reparar que demorámos quatro parágrafos deste artigo até chegarmos a ela, a figura de proa incontestável e incontestada até aqui. De repente, é uma série sobre três mulheres. Quererá isto dizer que, nesta temporada, “The Crown” é uma série sobre feminismo? Não exatamente: é uma série sobre poder no feminino, mas entre mulheres que se desprezam. Cada qual com a sua visão de mundo, rasgadamente diferente das outras, pautada com confusão, incompreensão e conflito. Uma Diana que quer fazer parte, mas sem deixar de ser um bastião de modernidade entre o mofo; uma primeira ministra conservadora que até pode ter quebrado o teto de vidro do machismo, mas que é ela própria amiúde misógina; e uma rainha que é sinónimo de sistema e de manutenção do status quo.
É, aliás, nesta temporada que cortamos de vez com a rainha frágil desempenhada por Claire Foy nas primeiras temporadas (aqui com um breve regresso no oitavo episódio) e damos de caras com uma matriarca com um certo problema de empatia, tornada distante e até um pouco cruel por décadas de reinado. De tanto ter de lutar contra a sua fragilidade, passou a abominar as fragilidades dos outros. A linha entre aquilo que tem de parecer e aquilo que efetivamente é já há muito se esbateu, sendo mais raro o seu lado humano – que, quando aparece, é agora por vezes mesquinho (veja-se o modo como tratar Thatcher quando a convida para a sua casa de campo ou a inveja que tem de Diana pelo modo como é recebida numa visita de Estado à Austrália).
[veja aqui mais imagens da nova temporada:]
Coube à atriz Olivia Coleman, aqui na sua segunda temporada, a tarefa de nos fazer deixar de simpatizar com Isabel II. Esta é, aliás, a season de “The Crown” da qual os membros da Casa Real saem pior, quebrando-se enfim aquele envolvente e frágil cristal de “são a Família Real, mas se calhar também são humanos como nós”. Não são. Habitam uma bolha de privilégio que os torna distantes e orgulhosamente inacessíveis e até condescendentes. Eles são a Velha Guarda num mundo que já começa a clamar pela Nova.
Às três mulheres protagonistas mencionadas anteriormente, há que acrescentar uma quarta, que mesmo tendo relativamente poucas cenas é uma presença constante, qual assombração: Camilla Parker Bowles. Cabe a esta temporada contar uma das Histórias de amor mais célebres do século XX, mas esta série não nos deixa ir ao engano: o amor avassalador e eterno é entre Camilla e Carlos. Diana foi um peão neste xadrez – um peão que acabou por atrapalhar ao mostrar ter potencial para ser uma peça mais importante até que os seus jogadores.
Quanto a Thatcher, um dos pontos mais interessantes da série é mostrar o seu lado para lá da porta fechada de Downing Street. A implacável primeira ministra, que lidou com o IRA, com as ilhas Malvinas e com o galopante desemprego, é aqui vista a cozinhar para chefes de Estado ou a chorar o desaparecimento momentâneo de um filho. Este mix entre a mulher que não reconhecia meritocracia aos monarcas — e que chefiou com mão de ferro um governo polémico — e entre a dona de casa que vocifera contra a incapacidade feminina para a liderança é um dos balancés mais interessantes da série.
Num irrepreensível sortido rico de História, entretenimento e arte, “The Crown” está longe de abdicar de ser uma das melhores séries de sempre. Repleta de metáforas, umas mais subtis que outras, é complexa sem se esquecer de ser apelativa. Quem não vê porque associa esta série a um simples folhear de uma Holla está a perder algo tão divertido como andar de patins em Buckingham com o volume no máximo.