Bernardo Santareno tinha morrido há um ano quando O Judeu, considerado por muitos a sua melhor obra, foi estreada no Teatro D. Maria II, em Lisboa. A peça sobre um dramaturgo que morre queimado na fogueira tinha sido escrita e publicada em 1966, mas nunca tinha sido apresentada publicamente por causa da censura que, durante anos, proibiu a estreia das obras de Santareno. O escritor chamou desde cedo a atenção da PIDE. A escolha de temas controversos, que chocavam com as mentalidades da época, fizeram com que o seu nome começasse a aparecer nos relatórios da polícia política a partir da década de 1950 e daí não desaparecesse até ao fim da ditadura. Apesar do ambiente sufocante e do afastamento dos palcos, o dramaturgo nunca abandonou a postura de denúncia e comentário social que sempre marcou as suas obras.
O fim do Estado Novo trouxe-lhe finalmente o espaço que que lhe era devido, a estreia das peças proibidas e a possibilidade de se dedicar abertamente à política, quer através do MDP/CDE, de que foi militante, como do Movimento Unitário dos Trabalhadores Intelectuais, que integrou em 1975. Esta foi tomando cada vez mais espaço na sua vida, e a tornar-se mais evidente nas suas obras — a sua última peça, O Punho, que ficou inédita, é um retrato do Alentejo no contexto da reforma agrária. A par da liberdade artística, o 25 de Abril trouxe-lhe o reconhecimento enquanto um dos grandes dramaturgos portugueses do século XX. Passados 100 anos do seu nascimento, é assim que Santareno é recordado, e também como um artista resistente e um amante da liberdade.
O médico que tentou ser padre e acabou escritor
António Martinho do Rosário, que ficaria conhecido como Bernardo Santareno, nasceu a 19 de novembro de 1920, em Santarém. A mãe, Maria Ventura Lavareda, originária de Santarém, era profundamente religiosa e terá sido dela que o dramaturgo terá herdado o seu lado mais místico, evidente nalgumas das suas obras. O pai, Joaquim Martinho do Rosário, era natural da aldeia de Espinheiro e filho de um serrador. Republicano convicto e anticlerical, Joaquim era politicamente ativo e foi preso várias vezes, antes e depois de Salazar chegar ao poder. Durante a Ditadura Militar, chegou a ser deportado para Angola, onde esteve durante dois anos, pelo seu envolvimento na Revolta de Fevereiro de 1927.
Bernardo Santareno passou a infância e juventude em Santarém, onde frequentou o Liceu Sá da Bandeira. Em 1933, o pai foi novamente preso, juntamente com outros republicanos, por se opor à ditadura e pelo armazenamento de bombas num armazém, episódio que lhe valeu a alcunha de “Joaquim das Bombas”. Em 1939, incentivado por Joaquim, Santareno mudou-se para Lisboa, onde começou a frequentar os cursos preparatórios de Medicina. Sem conseguir avançar nos estudos, fugiu para o Seminário dos Olivais, em 1943. Foi o próprio Joaquim do Rosário que o foi buscar, ameaçando-o de arma em punho que antes o queria morto “que metido com padrecos”, contou o Correio do Ribatejo.
Santareno esteve na capital até 1945. Sem conseguir concluir o segundo ano de Medicina, acabou por pedir transferência para Coimbra, onde terminou o curso em 1950, especializando-se em Psiquiatria (Santareno chegou a trabalhar no Hospital Júlio de Matos, em Lisboa). Como lembrou o Museu do Aljube, que lhe dedicou uma exposição a propósito dos 100 anos do seu nascimento, a medicina e a psiquiatria foram essenciais no desenvolvimento da sua consciência política e também na sua dramaturgia, profundamente marcada por questões mentais, sexuais (a homossexualidade é abordada em alguns dos seus trabalhos, sobretudo nos mais tardios) e da natureza humana.
Foi no ano seguinte que o nome António Martinho do Rosário surgiu pela primeira vez nos relatórios da PIDE. No boletim de informação n.º 130998, datado de 11 de abril de 1951, a polícia política lembrava que o médico, então a trabalhar no Hospital de António António dos Capuchos, tinha integrado, em Lisboa, a Juventude Universitária Católica e, em Coimbra, o Centro Académico de Democracia Cristã. Apesar do envolvimento político, nada se apurou naquela altura “em seu desabono”, “tanto moral como politicamente”. Passado um ano, o currículo imaculado de Santareno deixou de o ser, depois de o informador “Gomes” ter dado conta das críticas que fazia aos serviços de assistência aos portugueses durante as refeições na Pensão Astória, na Rua Braamcamp, e dos elogios que tecia à União Soviética. “A única solução era experimentar-se o regime comunista em Portugal para assim se avaliar dos seus benefícios”, terá dito Santareno, segundo informou o “Gomes”, a 22 de julho de 1952.
[Bernardo Santareno em 1970, à saída de uma sessão do filme “O Cerco”, de António da Cunha Telles:]
Em 1954, lançou-se como autor, com um primeiro livro de poemas, A Morte da Raiz. A esta coletânea de poesia, seguiram-se outras duas, Romance no Mar (1955) e Os Olhos da Víbora (1957). Anos mais tardes, considerou-as “francamente más” e “de tipo dramático”, com poemas feitos para “declamar”, “para dizer”. Só depois se aventurou no drama, a sua “expressão natural”. Estreou-se neste género, pelo qual se destacou e pelo qual ficou conhecido, em 1957, com um volume que reunia três peças: A Promessa, O Bailarino e A Excomungada.
A primeira foi levada à cena em novembro desse mesmo ano, pelo Teatro Experimental do Porto, mas acabou por ser retirada devido a pressões exercidas pelo clero reacionário do Norte. Só voltou aos palcos em 1967, numa produção do Teatro Monumental. Como apontou o Museu do Aljube, a partir daqui, o teatro de Bernardo Santareno, próximo do naturalismo e da tragédia clássica, com elementos neorrealisas, começou a assumir um carácter cada vez mais político e, em consequência, a chamar cada vez mais a atenção das autoridades.
Nos mares do fim do mundo
No final da década de 1950, Bernardo Santareno integrou, como médico, a frota do arrastão David Melgueiro, onde testemunhou as precárias condições de higiene e de salubridade e as longas jornadas de trabalho, muitas vezes ininterruptas e mal pagas, a que eram sujeitos os marinheiros da frota bacalhoeira portuguesa na Terra Nova. Foi a bordo deste navio que escreveu uma parte de Nos Mares do Fim do Mundo, obra em que reuniu as histórias e experiências dos pescadores bacalhoeiros com os quais se cruzou em 1957 e em 1958, quando participou numa segunda campanha, no Senhora do Mar e no Gil Eannes, um navio-hospital.
O livro foi publicado em 1959, ano em que Santareno estreou duas novas peças no Teatro D. Maria II: O Lugre, inspirado nas mesmas experiências na Terra Nova e Gronelândia, e O Crime da Aldeia Velha, obra baseada no chamado Crime de Soalhães, a história verídica do assassinato de uma mulher pelos vizinhos que a julgavam possuída pelo diabo numa pequena aldeia do conselho de Marco de Canavezes, em 1934. A peça — a história de uma jovem, a mais bonita da aldeia, que é queimada viva para expulsar os demónios que existiam dentro dela — foi adaptada ao cinema em 1964, por Manuel Guimarães. A longa-metragem é, em parte, responsável pela persistência da história na memória dos portugueses. Mais recentemente, foi transformada numa série, “Terra Nova”, transmitida este ano pela RTP, e num filme com o mesmo nome.
[Trailer do filme “O Crime da Aldeia Velha”, realizado por Manuel Guimarães:]
Depois de O Crime da Aldeia Velha, todas as peças foram proibidas pela censura: António Marinheiro (1961), O Duelo (1961), O Pecado de João Agonia (1961) e Anunciação (1962), que só anos mais tarde viriam encenadas. Também Os Anjos e o Sangue, escrita de propósito para a televisão, ficou por estrear. Apesar da censura, a escrita subversiva de Santareno teve desde logo a adesão de uma certa crítica que reconheceu desde logo o seu talento.
O fim da ditadura e a liberdade que o 25 de Abril trouxe
Em 1966, Santareno publicou O Judeu, considerado por muitos a sua melhor obra e um dos mais importantes textos dramáticos da literatura portuguesa moderna. Partindo do romance homónimo de Camilo Castelo Branco, que narra a vida de António José da Silva, dramaturgo do século XVII conhecido como “o judeu”, que morreu num auto de fé em 1739, Bernardo Santareno criou uma história que serve de alegoria à situação política portuguesa do seu tempo e à perseguição e censura salazaristas. A peça marca uma nova fase no trabalho de Santareno, marcadamente mais intervencionista. Para trás ficaram temas de caráter mais popular e questões existenciais ambíguas.
O regresso aos palcos aconteceu no ano seguinte. Dez anos depois da sua publicação, A Promessa voltou a ser encenada em 1967, no mesmo ano em que saiu O Inferno. No ano seguinte, foi levado a cena O Pecado de João Agonia, “uma peça avançadíssima para a época e de uma rebeldia e coragem que hoje não é compreendida”, considerou o ator e encenador Carlos Avilez, referindo-se ao tema da homossexualidade, tratado nesta peça e noutras da fase mais tardia de Santareno. “Foi uma pedrada no charco”, declarou Avilez, numa entrevista dada a propósito dos 100 anos do nascimento do dramaturgo. O ator e encenador, que colaborou com Santareno, considerou-o “muito importante” para a sua geração e uma influência para si e para “uma série de colegas”.
Em 1969, foi editado A Traição do Padre Martinho que, em dezembro de 1970, foi encenada em Cuba, por Rogério Paulo. Uma notícia publicada no Jornal do Fundão a 13 de dezembro, adiantava que “há cerca de um mês que a lotação para a estreia se encontrava esgotada”. “Por motivos alheios à sua vontade”, Santareno, que tinha sido convidado para se deslocar a Cuba pelo Conselho Nacional de Cultura cubano, não assistiu à primeira encenação. Em Portugal, a censura proibiu a sua apresentação, no continente e também nas ilhas.
[Entrevista de Carlos Avilez à Universidade Aberta sobre Bernardo Santareno:]
Com o fim da ditadura, Santareno começou a envolver-se mais politicamente. Em 1975, associou-se ao Movimento Unitário dos Trabalhadores Intelectuais (MUTI), uma organização de intelectuais empenhados na defesa da revolução, da reforma agrária e do socialismo, próxima do PCP, e tornou-se militante do MDP/CDE. No mesmo ano, fez a sua primeira incursão na revista, assinando, juntamente com César Oliveira, Rogério Bracinha e Ary dos Santos, o espetáculo Pra trás mija a burra, levado à cena no Parque Mayer. A última peça em que trabalhou foi O Punho. A obra reflete muitas das preocupações do período pós-revolucionário, nomeadamente a defesa da reforma agrária. Ficou inédita até 1987.
Bernardo Santareno morreu a 30 de agosto de 1980, aos 59 anos. O seu trabalho de dramaturgo era reconhecido, mas só no ano seguinte o Governo português lhe prestou tributo: foi condecorado postumamente com a Ordem Militar de Santiago da Espada, a 13 de julho de 1981, pelo Presidente António Ramalho Eanes.