Poucos operadores, quotas de mercado muito concentradas – sobretudo nas áreas de produção, armazenagem e logística –, volumes de vendas em queda e margens de comercialização a subir. Este é o retrato feito à evolução dos últimos três anos no mercado nacional de combustíveis, elaborada pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE).
A análise da ERSE volta a a alertar para os problemas já conhecidos de concorrência neste setor, que foi já alvo de várias intervenções legislativas no sentido de promover maior oferta e preços mais competitivos — como a imposição dos combustíveis low-cost. E avisa que – com a queda previsível deste mercado nos anos futuros, fruto da transição energética para combustíveis limpas – os problemas tenderão a agravar-se.
E o elo da cadeia onde o problema tem maior expressão é na área do armazenamento e logística, na qual a principal instalação do setor, a CLC, apresenta uma taxa de remuneração muito elevada face à mínima definida por lei e às verificadas nas infraestruturas de outros setores de energia, “especialmente tendo em conta o grau de risco da empresa e estabelecendo um paralelo com infraestruturas que a ERSE regula nos setores da eletricidade e do gás natural”.
A CLC (Companhia Logística de Combustíveis) gere o parque de Aveiras e o pipeline que abastece esta infraestrutura de todos os combustíveis a partir da refinaria de Sines. A CLC é tão crucial para o abastecimento do mercado nacional que o bloqueio promovido por camionistas em frente à sua entrada, em 2008, deixou parte do país sem combustíveis, incluindo o aeroporto de Lisboa. A empresa é controlada pela Galp, que detém 65% do capital, tendo ainda como acionistas a BP (15%), a Repsol (15%) e a Rubis Energia (5%).
As instalações da CLC foram declaradas de interesse público em 2015, o que obriga esta entidade a apresentar anualmente um conjunto de informação sobre tarifas, investimentos e contas ao regulador da energia, a ERSE. Apesar destas obrigações, os ativos do mercado de combustíveis, bem como os preços, não estão sujeitos ao mesmo tipo de regulação que as outras atividades da energia, que devido às suas infraestruturas, são mais monopolistas. São os casos da eletricidade e do gás natural, onde o regulador tem uma intervenção determinante na fixação dos investimentos, que são remunerados pelas tarifas cobradas aos clientes para usar esses ativos e que são determinadas anualmente pela ERSE.
A taxa mínima prevista nas normas que regulam as tarifas praticadas por esta infraestrutura é de 8%, já superior às taxas de remuneração aplicada no transporte da eletricidade, que entre 2015 e 2019 tiveram valores médios entre os 5,2% e os 6,2%, já depois de descontadas as amortizações para o investimento. A análise feita pela ERSE às contas aponta para taxas de rentabilidade económicas muito superiores, entre 2017 e 2019, de 28% a 38% antes de impostos. Já a taxa de rentabilidade dos investimentos, “mesmo depois de impostos, é bastante elevada, variando entre os 48% e os 51%, sendo o valor mais alto registado em 2019”.
Para este resultado, contribui uma metodologia tarifária que não reflete, segundo a ERSE, os princípios da transparência e da não discriminação e que assentam em vários pontos:
- Definição de uma tarifa única por produto que varia em funções das quantidades expedidas à atividade de armazenagem;
- Fixação de tarifas com base nos valores praticados em infraestruturas de custas, sem refletir os custos específicos da CLC;
- Ausência de transparência na formulação das tarifas base;
- Aplicação de descontos para os quais não se conhecem fundamentação e que descriminam os utilidades das infraestruturas, favorecendo os de maior dimensão (e que são também os acionistas), o que representa uma barreira entrada.
Estes fatores potenciam comportamentos de subsidiação cruzada entre utilizadores, alerta o regulador.
A análise da ERSE destaca ainda os valores mais ou menos constantes das prestações de serviços cobradas, entre 25 e os 28 milhões de euros anuais, em paralelo com uma estrutura de custos estável entre os 11,7 milhões e os 12,2 milhões de euros, combinados com uma dívida bancária baixa e uma elevada taxa de amortização dos ativos (e dos investimentos) de 84%.
O volume de vendas tem-se revelado constante nos três anos analisados entre 2017 e 2019, sendo praticamente canalizado quase todo para os acionistas, sendo ainda verificável um alinhamento entre os benefícios resultantes do uso da infraestrutura e as participações acionistas. “Neste contexto, e pese embora a CLC mantenha operacional um regime de acesso a terceiros às suas instalações, não parecem estar reunidas, na prática, condições de concorrência para todos os operadores”.
As quatro grandes ibéricas: da refinação ao cliente final
A concentração é aliás uma marca do mercado nacional, sobretudo nas áreas de produção, armazenagem e logística, e que é reforçada quando estamos perante operadores verticais como as petrolíferas que controlam quase toda a cadeia de valor do mercado.
A Galp, a Repsol, a BP e a Cepsa controlam perto de 90% da capacidade total de armazenagem em Portugal, sendo igualmente as quatro empresas com refinarias na Península Ibérica, o que lhe permitem realizar swaps de produtos e explorar sinergias , aumentando a sua vantagem face aos concorrentes. São igualmente os operadores que têm maior visibilidade junto dos clientes finais, por terem uma rede com mais postos a nível nacional.
Na área do armazenamento, há algumas exceções como o terminal de granéis líquidos e armazéns da Prio no porto de Aveiro, ou o terminal do Barreiro da Alkion, que é a única instalação a receber, guardar e expedir combustíveis que é explorado por um operador independente das petrolíferas. Apesar da capacidade de armazenamento considerável, e com potencial para expansão, o terminal do Barreiro está limitado pela profundidade das águas, que não permite abastecimento por navios de maior porte.
Já no retalho, a oferta é mais muito mais diversificada com vários tipos de operadores a disputar o mercado com as petrolíferas tradicionais, como as empresas low-cost e os hipermercados. Ainda assim, dados de 2019 mostram que as petrolíferas tradicionais – e que dominam mais de 90% do combustível introduzido no mercado – tinham uma quota de 67% nas vendas de gasolina e de 60% no gasóleo. Os hipermercados venderam 19% da gasolina e 17% do gasóleo, enquanto a quota de mercado das chamadas low-cost se situava entre os 9% na gasolina e os 11% do gasóleo.
As margens de comercialização variam consoante o tipo de operador, com as companhias de bandeira a praticar os valores mais altos e os hipermercados a aplicar os valores mais baixos.
O estudo levado a cabo pela ERSE revela também que, apesar de não existirem grandes diferenças regionais nos preços médios dos combustíveis, os distritos de Bragança, Beja e Lisboa têm preços mais altos do que a média nacional, entre 1 a 2 cêntimos por litro. Do outro lado estão Castelo Branco, Santarém e Aveiro, com valores médios um cêntimo abaixo dos preços médios nacionais.
No entanto, a evolução destas margens nos últimos dois anos revela evoluções diferenciados. Considerando a gasolina e um período que apanha os primeiros meses do efeito da pandemia, marcado por fortes quedas no consumo deste combustível, os operadores com preços mais baixos — os hipermercados — foram os que mais aumentaram as margens.
Já no caso do gasóleo, e olhando agora apenas para os anos de 2018 e 2019, o estudo conclui que as companhias low-cost foram as que mais elevaram as suas margens. As diferentes margens refletem as políticas comerciais distintas, com as petrolíferas a apostar na mais na fidelização (cartões de desconto) face ao preço, com a ERSE destacar a grande correlação que existe entre a evolução do preço dos produtos refinados e dos preços finais dos combustíveis.
No período analisado, a “evolução verificada na margem de comercialização praticada pelos operadores com ofertas low-cost, que evidenciou um aumento de muito considerável de 2018 para 2019 (42%) sugere um posicionamento comercial destes operadores, passando de uma estratégica baseada sobretudo no preço, para um posicionamento intermédio, mais próximo da diferenciação e fidelização de clientes do que o inicialmente adotado”.
Margens subiram com queda de vendas durante o confinamento
Já quando olhamos para o comportamento dos operadores na primeira metade deste ano, marcada por uma queda muito acentuada da procura (em particular na gasolina), a ERSE refere que esta “teve impacto nas margens de comercialização praticada pelos operadores com aumentos significativos a gasolina e no gasóleo simples, de 33,8% e 20,7%, respetivamente.”
Esta situação é em certa medida justificada pela necessidade de repercutir componentes fixas de custo na cadeia de valor por volumes de venda menores. A rede retalho de combustíveis rodoviários tem associada forte componente de custos fixos, sendo de sublinhar o facto de no decurso do estado de emergência ter havido obrigatoriedade de manter em atividade esses postos, independentemente dos níveis de atividade”.
Esta queda de mercado concentrada no tempo pode servir de antevisão à tendência de médio e longo prazo que se advinha para a evolução do mercado de combustíveis. Este negócio assenta em volumes de vendas elevados e margens reduzidas cujo equilíbrio será afetado pelo transição energética da qual se antecipa uma redução muito acentuada do consumo de combustíveis nas próximas décadas. Neste cenário, avisa a ERSE, é “pouco razoável” esperar um reforço da concorrência com a entrada de mais operadores no mercado, sendo até previsível a evolução contrário no sentido de uma maior concentração.
Da mesma forma, novos investimentos terão mais dificuldade em ser recuperados, razão pela qual a ERSE aponta vários constrangimentos ao projeto de construção de um oleoduto para ligar a refinaria ao porto de Sines, recomendando que se ponderem alternativas para facilitar o acesso de terceiros às infraestruturas da Galp e da Repsol em Sines.
Neste contexto, a regulação tem de responder ao desafio de assegurar o equilíbrio entre a proteção dos consumidores e a viabilidade económica dos operadores, favorecendo a otimização dos recursos existentes em vez de pedir novos investimentos. Para mitigar os riscos, a ERSE defende o uso partilhado de infraestruturas e iniciativas que incentivem a desverticalização do setor.