As campainhas de alarme dispararam no final de setembro, depois de a Polícia Montada do Canadá ter anunciado a detenção de Shehroze Chaudhry, o canadiano de origem paquistanesa que em 2018 revelou ao New York Times toda a história sobre como teria sido recrutado pelo Estado Islâmico e as atrocidades que teria cometido na Síria ao seu serviço.

Shehroze Chaudhry — ou Abu Huzayfah, nome que teria adotado quando se juntou aos fundamentalistas islâmicos — foi detido no Canadá nada menos do que por fabricar o seu envolvimento no Estado Islâmico e por, no processo, ter levantado “preocupações face à segurança pública entre os canadianos”.

Apesar de se ter apressado a garantir que as dúvidas sobre os relatos de Chaudhry, um dos personagens principais do podcast de 12 episódios “Caliphate”, distinguido em 2019 com um Prémio Peabody, já tinham sido levantadas ao longo dos episódios, fonte do jornal, referência no jornalismo mundial, anunciou logo nessa altura que ia abrir uma investigação interna ao trabalho.

“Embora a incerteza sobre a história de Abu Huzayfah tenha sido explorada diretamente em episódios de ‘Caliphate’ sobre a sua pessoa, a sua prisão e as alegações que a rodearam levantaram novas e importantes questões sobre ele e as suas motivações”, disse na altura o porta-voz do jornal.

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Agora, mais de dois meses depois, o New York Times anunciou finalmente que chegou à conclusão de que errou e que o testemunho de Shehroze Chaudhry era falso — o canadiano inventou tudo, nunca foi responsável por execuções nem por quaisquer outros atos de terrorismo, e utilizou vídeos e imagens que descarregou da Internet para comprovar os seus relatos. O trabalho “não cumpriu os padrões de jornalismo do Times”, assumiram os responsáveis pelo diário.

“Quando o New York Times faz um jornalismo profundo, grande e ambicioso, seja em que formato for, colocamo-lo sob uma enorme quantidade de escrutínio nos níveis superiores da redação”, disse o editor executivo do jornal, Dean Baquet, numa entrevista publicada na passada sexta-feira, também em formato podcast. “Neste caso isso não aconteceu. E penso que eu ou outra pessoa devíamos tê-lo feito, porque se tratava de uma grande e ambiciosa peça de jornalismo. Não proporcionei esse tipo de escrutínio, nem os meus principais adjuntos, todos com uma profunda experiência no exame de reportagens de investigação”, admitiu.

“A equipa de reportagem não conseguiu encontrar nenhuma prova independente que sustente a história de que esta pessoa tenha sido um carrasco do Estado Islâmico na Síria. Agora, aquilo que assumimos é que este tipo é um vigarista, que inventou a maior parte ou tudo aquilo que nos contou“, reconheceu o editor executivo do New York Times, que fez questão de assumir o sucedido como uma “falha da instituição” New York Times.

Apesar de o podcast não ter sido retirado, foi-lhe acrescentada uma advertência: “Na ausência de provas mais sólidas, o ‘Califado’ deveria ter sido substancialmente revisto para excluir o material relacionado com o Sr. Chaudhry. O podcast como um todo não deveria ter sido produzido com o Sr. Chaudhry como personagem central”.

Questionado sobre Rukmini Callimachi, a jornalista responsável pelo podcast “Caliphate” — que em 2019 chegou a ser indicada para o Pulitzer, o mais prestigiado prémio do jornalismo mundial, exatamente por este trabalho, e que desde setembro nunca mais assinou uma peça que fosse no jornal —, Baquet garantiu que o seu posto de trabalho não está em causa. Mas adiantou também que, tendo em conta os acontecimentos, Callimachi não vai poder continuar a trabalhar na mesma área. “Acho que é difícil continuar a cobrir terrorismo, depois do que aconteceu com esta história.”

Depois de meses de silêncio, a jornalista, que já tinha sido indicada para o Pulitzer noutras duas ocasiões (em 2009 e 2014) e que, apuraram os jornalistas e editores responsáveis pela investigação interna no New York Times, terá tido problemas semelhantes em outros dois trabalhos, um em 2014, outro em 2o19, falou finalmente sobre o assunto no Twitter, explicou que apanhou o entrevistado a mentir em várias ocasiões e que reportou essas mesmas inconsistências — o problema terá sido não dar por uma série de outras, escreveu.

“Acrescentei advertências para tentar tornar claro aquilo que sabíamos e o que não sabíamos. Não foi suficiente. Aos nossos ouvintes, peço desculpa por aquilo que deixámos escapar e por aquilo em que errámos. Estamos a corrigir os registos e comprometo-me a fazer melhor no futuro”, concluiu a jornalista.

Entretanto, e pegando numa das outras duas ocasiões em que o trabalho da jornalista levantou dúvidas aos editores responsáveis pela investigação interna no jornal e que foi agora corrigido, o Washington Post publicou um artigo de opinião em que sugere que o problema é maior do que aquele que o “mea culpa” do jornal sugere e que existe de facto um problema com Rukmini Callimachi.

Assinado pelo crítico de media Erik Wemple, o texto revela que vários colegas da jornalista tinham já alertado os superiores para os seus métodos de trabalho, alegadamente pouco ortodoxos, remontando algumas das queixas ao final de 2014 — Callimachi tinha-se mudado da Associated Press para o New York Times cerca de um ano antes.

Karam Shoumali, um jornalista sírio que trabalhou com Rukmini Callimachi em 2014, justamente num dos artigos agora corrigidos, contou entretanto no Twitter que lhe enviou várias correções antes de o trabalho ser publicado. “Ela ignorou-as.”