Se está a guardar duas horas deste dia de Natal para ver “Soul” em família, é importante que saiba já isto: vai ficar a pensar muito naquilo que está por resolver na sua vida. “Soul” é o segundo filme da Pixar que se estreia este ano – depois de “Onward” – e era para ter chegado às salas de cinema em junho. Mas já se sabe, a pandemia… Contudo, o adiar talvez lhe faça bem: é algo fresco, novo, mas familiar ao mesmo tempo, para o Natal 2020.
Talvez tenhamos de nos habituar a isto: ver um filme novo – realmente novo e não pela primeira vez porque não se viu antes – nos próximos natais. O streaming impulsiona isso e o teste que a Disney está a fazer com “Soul”, estreando-o diretamente na sua plataforma Disney+, pode dar motivos para continuar. Afinal, é um filme da Pixar. E não é um filme qualquer da Pixar, é o novo filme de Peter Docter, que está na produtora desde “Toy Story” (como argumentista) e é responsável por obras maiores do que a vida, como “Up” ou “Inside Out”, os dois melhores filmes adultos da Pixar (e entre os melhores da história do cinema). Agora, junta-se outro, este “Soul”.
O filme tem o jazz como pano de fundo. A música é puxada pelo protagonista, Joe Gardner (com a voz de Jamie Foxx no original, Jorge Mourato na versão dobrada em português), um professor de música que sempre sonhou ser pianista de jazz numa banda — e o primeiro protagonista negro de um filme da Pixar. Daqueles adultos que procuram um sonho, que estão à espera da morte para desculpar o facto de não o terem concretizado. Acontece que a oportunidade surge à frente de Joe Gardner, sem ele estar à espera. Um antigo aluno convida-o para ensaiar com uma cantora conhecida. Corre bem e ela quer que ele toque com ele no palco. Mas, como o trailer explica logo ao início, Joe morre inesperadamente:
Vamos ficar por aqui nos detalhes do enredo. Revelar mais seria criminoso. Mas podemos dizer isto: se “Up” tem aquele início maravilhoso, monumental, sobre que coisa é esta da vida – um início que arranca lágrimas, através do flashback de um velho atirado para a solidão –, “Soul” tem uma introdução de dez minutos que cai rapidamente num abismo particular. Vai ao fundo do fundo, como dizia a canção, para depois esperar que o espectador regresse à superfície em glória. E a explicação está logo no título: “Soul” é um filme sobre almas. Não necessariamente através do sentido mais particular da palavra. E é aqui que está o génio de Docter e da Pixar.
Estas almas não falam sobre um além ou o que vem depois da morte; antes, falam sobre o que vem antes da vida. Neste filme, há um “Great Before”, um sítio onde as almas são treinadas para estarem prontas para ocupar um corpo. É um campo de treinos de almas, isso mesmo. No “Great Before”, Gardner tenta algo inédito, uma segunda vida, uma segunda oportunidade. Quando se pensa que “Soul” será isso, um filme sobre “segundas oportunidades”, dá imediatamente a volta para apresentar 22 (personagem interpretada Tina Fey), uma alma que se recusa a vir para a Terra e fazer o seu papel. Isto tudo acontece durante os primeiros 20 minutos. É muita coisa.
Com 22 na história, Gardner cresce como personagem. E, com ele, também “Soul”. Com o avançar da narrativa, vai-se desmontando o fator “morte”, apresentado logo no início. A palavra e o conceito transformam-se, e as almas apresentam-se com códigos que vão além dos humanos – embora se comportem como eles –, à semelhança do que acontecia em “Inside Out”. As diferenças entre as duas personagens, uma que quer uma segunda oportunidade e outra que não quer oportunidade alguma, criam um balanço fascinante para documentar uma ficção muito familiar com o espectador, sobre a vida de todos os dias.
Pesado para o Natal? Longe disso. “Soul” é divertidíssimo. E o jazz está sempre no fundo, a mexer, a dar um movimento e uma magia que não existem noutro filme da Pixar. A história de Gardner e de 22 não está longe da de Andy (o garoto de “Toy Story”, que brinca com Woody e Buzz) e como o vimos crescer com os seus brinquedos. E a deixá-los e a crescer sem eles. A continuidade da alma torna a morte de Gardner impercetível. E essa característica transforma o conceito, torna-o fácil para as crianças e compreensível para os adultos. À superfície, “Soul” é uma aventura, mas no fundo é uma belíssima história sobre não deixar para amanhã o que se pode fazer hoje, ou como as segundas oportunidades são uma ilusão pela qual não se pode esperar. Há que correr atrás das primeiras. Ótima matéria de pensamento para as resoluções de Ano Novo.
Paralelamente ao filme e à sua história, “Soul” passa uma importante mensagem da Disney. Se o serviço Disney+ é a plataforma de streaming para as famílias, estrear um filme da Pixar no dia de Natal – depois de tudo o que aconteceu em 2020 – é uma mensagem forte sobre o que se pode esperar no próximo ano e, além disso, sobre o efeito de contágio que poderá ter nos outros operadores concorrentes. Algo que já paira no ar: a Warner Bros., por exemplo, confirmou que os seus filmes estrearão em simultâneo nos cinemas e na HBO Max (nome que o serviço HBO Portugal vai adotar em meados de 2021).
Acontecimentos como “Soul” podem tornar-se no novo normal. Um em que o espectador se senta com a sua família, na tarde 25 de dezembro, para ver um filme sobre o qual não tem qualquer base, passado ou memória. Algo novo que dentro de momentos irá fazer parte de uma voz coletiva e estará presente em todo o lado. Como uma mensagem de Natal que ultrapassa fronteiras e que apenas se rege pelo entretenimento. “Soul” é indiferente a que se goste ou não desse mundo, dessa forma de viver o Natal ou experienciar o momento em família. É, isso sim, um novo início. E que grande início.