A Constituição dos Estados Unidos manda que Joe Biden tome posse dentro de menos de duas semanas: o dia 20 de janeiro está constitucionalmente consagrado como o primeiro do mandato do novo Presidente norte-americano após uma eleição. Com a vitória do democrata definitivamente validada pelo Congresso após uma noite caótica de que resultaram quatro mortes, está tudo pronto para a tomada de posse. Mas, mesmo faltando apenas duas semanas, Donald Trump — que está a ver os seus aliados republicanos mais fiéis afastarem-se — pode nem sequer chegar ao final do mandato. Nos bastidores da política norte-americana discutem-se dois cenários: invocar a 25.ª emenda da Constituição ou um segundo impeachment.
A noite de quarta-feira acelerou esta discussão. No edifício do Capitólio, em Washington D.C., congressistas e senadores reuniram-se para formalizar a contagem dos votos e validar definitivamente os resultados da eleição presidencial. Foi um último formalismo, após dois meses em que Trump se multiplicou em esforços para tentar rever os resultados de novembro — e, pelo caminho, foi perdendo o apoio dos republicanos mais fiéis que, eles próprios, começaram a considerar que já era tempo de reconhecer a derrota. Numa noite em que o próprio vice-presidente, Mike Pence, recusou ceder aos esforços desesperados de Trump e consagrou a vitória de Biden, centenas de manifestantes invadiram o Capitólio em defesa do atual Presidente, levando a uma interrupção de cinco horas nos trabalhos e a confrontos violentos que resultaram na morte de quatro pessoas.
Trump foi assistindo a partir do Twitter. Instado por todos os quadrantes a pôr fim aos protestos, o Presidente limitou-se a pedir aos seus apoiantes que se mantivessem pacíficos, disse que os amava e viu as suas redes sociais suspensas por disseminar mentiras sobre a autenticidade dos resultados eleitorais e, com isso, promover a violência. A intervenção de Trump — ou a falta dela — nos violentos protestos de quarta-feira levou vários elementos do Partido Democrata a passarem das ideias à ação e a arrancar com o planeamento da possível destituição de Donald Trump, considerando-o incapaz de governar. Vejamos os dois cenários.
1. A 25.ª emenda da Constituição
Foi uma das primeiras respostas organizadas do Partido Democrata ao caos que se viveu em Washington D.C. durante a noite de quarta-feira. Numa carta enviada ao vice-presidente dos EUA, Mike Pence, os 19 congressistas democratas que fazem parte do comité judicial do Congresso pediram a ativação da 25.ª emenda da Constituição norte-americana — que prevê que, se uma maioria dos membros do governo, incluindo o vice-presidente, considerar que o Presidente está “incapaz de cumprir os poderes e os deveres do seu cargo“, Trump pode ser retirado da Presidência, que passa a ser assumida de modo interino pelo vice-Presidente.
NEW: I am sending a letter with @RepTedLieu and our colleagues on the House Judiciary Committee, calling on Vice President Pence to invoke the 25th Amendment to remove Donald Trump from office after today’s events. pic.twitter.com/5VK8DLTLn4
— David Cicilline (@davidcicilline) January 7, 2021
Na missiva, os 19 congressistas apelam a Mike Pence que considere a ativação daquele mecanismo constitucional na sequência do que aconteceu no Capitólio na quarta-feira. “O mundo observou horrorizado enquanto os rebeldes, que tinham sido incitados pelo Presidente, ameaçaram a segurança de representantes eleitos e funcionários e destruíram propriedade pública, à medida que entraram e ocuparam a Câmara dos Representantes e o Senado, colocando a nossa democracia em pausa”, lê-se na carta. “A dado momento, os rebeldes até retiraram uma bandeira americana hasteada no Capitólio e substituíram-na por uma bandeira de Trump.”
Republicanos afastaram-se de Trump e confirmaram a vitória de Biden depois de uma noite caótica
Os congressistas atacam a postura de Trump durante os protestos violentos. “Enquanto isso acontecia, o Presidente manteve-se em silêncio, mesmo quando os rebeldes partiam janelas, ameaçavam a polícia do Capitólio e escalavam as paredes do Capitólio. Nessa manhã, o Presidente Trump tinha feito um comício na Casa Branca e disse aos manifestantes ‘Eu vou estar convosco’ e encorajou-os a marchar rumo ao Capitólio, para contestar a certificação dos votos do Colégio Eleitoral”, escreveram. “No sábado passado, o Presidente Trump procurou minar a nossa democracia, encorajando responsáveis eleitorais na Geórgia a arranjarem mais votos para reverter os resultados da eleição.”
Os signatários da carta referem-se ao telefonema divulgado pelo The Washington Post que prova que Donald Trump pressionou o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, a encontrar 11.780 votos — aqueles de que necessitava para reverter o resultado eleitoral naquele estado.
Os democratas lembram que, “mesmo antes da eleição, o Presidente Trump recusou comprometer-se com uma transição de poder pacífica” e associam a atuação de Trump à “violência e caos desencadeados ontem“. Para os congressistas, todos estes motivos, aliados à forma como Trump reagiu aos protestos no Capitólio, são prova suficiente de que “ele não está mentalmente saudável e continua incapaz de processar e aceitar os resultados da eleição de 2020“.
“Forçosamente, a vontade do Presidente Trump de incitar à violência e ao tumulto social para reverter os resultados da eleição vai ao encontro deste critério”, alegam os congressistas do Partido Democrata. “Para bem da nossa democracia, apelamos-lhe enfaticamente que invoque a 25.ª emenda e começa o processo de remoção do Presidente Trump do poder. O Presidente Trump já mostrou, mais do que uma vez, que não tem vontade de proteger a nossa democracia nem de cumprir os deveres do seu cargo”, terminam os 19 democratas.
A 25.ª emenda da Constituição norte-americana prevê quatro cenários para a sucessão presidencial: morte; resignação; incapacidade temporária assumida pelo próprio; incapacidade determinada por outros membros do governo. É este quarto cenário que interessa aos congressistas democratas. É necessário que o vice-presidente e uma maioria dos membros do governo — os secretários, equivalentes ao cargo de ministro em Portugal — considerem que Trump está incapaz de exercer o cargo e o comuniquem aos líderes do Congresso.
Se houver discórdia entre o Presidente e esta maioria governativa — e tudo indica que haveria —, terá de de ser o Congresso a resolver o assunto, sendo necessária uma maioria de dois terços nas duas câmaras (Senado e Câmara dos Representantes) para definir que o Presidente não é capaz de continuar em funções. Durante todo esse processo, seria o vice-presidente Mike Pence a manter-se em funções, e a Câmara dos Representantes, onde os democratas têm atualmente maioria, teria relativa facilidade em adiar as votações até que terminasse o mandato de Trump. Isso significaria que, mesmo que no final a maioria de dois terços não fosse alcançada, os democratas conseguiriam manter Trump afastado.
Depois da carta difundida pelos 19 congressistas democratas, outro nome relevante do Partido Democrata chegou-se à frente para exigir a saída de Trump do poder. O líder da bancada democrata no Senado, Charles Schumer, descreveu os atos de violência no Capitólio como tendo sido “incitados pelo Presidente” e disse que Trump tinha de ser retirado do poder — seja através da 25.ª emenda, seja através de um novo processo de impeachment.
Também a presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, anunciou na quinta-feira que vai apoiar o pedido apresentado pelos congressistas. Num breve comunicado à imprensa, Pelosi admitiu que, se Pence não avançar com o processo, o Congresso está preparado para avançar com o processo de impeachment.
Speaker Pelosi: "I join the Senate Democratic leader in calling on the vice president to remove this president by immediately invoking the 25th Amendment."
If not, Pelosi says Congress may be prepared to move forward with impeachment. pic.twitter.com/x7Bs5bXLs7
— The Recount (@therecount) January 7, 2021
Durante a tarde de quinta-feira, o congressista republicano Adam Kinzinger juntou-se às vozes democratas e tornou-se o primeiro republicano a apelar diretamente ao uso da 25.ª emenda para retirar Trump do poder.
2. Outro impeachment
Enquanto os 19 congressistas democratas do comité judiciário escreviam a carta a Mike Pence, outra figura do partido começou a preparar outra via para a saída de Trump: o impeachment. Seria a segunda vez que Donald Trump enfrentaria um julgamento deste tipo, reservado às altas figuras do estado por crimes particularmente graves. Através do Twitter, a congressista democrata Ilhan Omar, do estado do Minnesota, anunciou que já começou a preparar os “artigos de impeachment” — ou seja, a acusação formal contra Trump.
“Estou a preparar os artigos de impeachment. Donald J. Trump deverá ser alvo de impeachment pela Câmara dos Representantes e retirado do cargo pelo Senado dos EUA. Não podemos permitir que se mantenha no cargo. É uma questão de preservar a nossa república e precisamos de cumprir o nosso juramento”, escreveu Omar.
I am drawing up Articles of Impeachment.
Donald J. Trump should be impeached by the House of Representatives & removed from office by the United States Senate.
We can’t allow him to remain in office, it’s a matter of preserving our Republic and we need to fulfill our oath.
— Ilhan Omar (@IlhanMN) January 6, 2021
Ao contrário da perceção comum, o impeachment não significa necessariamente a destituição. De acordo com as leis norte-americanas, o impeachment ocorre quando a Câmara dos Representantes acusa formalmente o Presidente dos EUA de crimes graves contra o país. A esse processo segue-se um julgamento em que o Senado atua como tribunal — e o Presidente pode ser destituído ou não. No caso do primeiro impeachment, relacionado com a polémica à volta das pressões sobre o governo ucraniano, Trump foi efetivamente acusado (ou seja, sofreu o impeachment), embora o Senado o tenha depois absolvido.
Se a congressista democrata conseguir fazer passar as acusações na Câmara dos Representantes (que é controlada pelo Partido Democrata), o julgamento segue depois para o Senado, onde é necessária uma maioria de dois terços para condenar e destituir o Presidente. Nas últimas horas, várias altas figuras do Partido Democrata, incluindo a congressista Alexandria Ocasio-Cortez e vários dos congressistas que haviam assinado a carta apelando à aplicação da 25.ª emenda, juntaram-se aos esforços de Omar.
Absolvido. O que ganhou e o que perdeu Trump com o impeachment?
Já esta quinta-feira, Ilhan Omar partilhou um excerto do texto que poderá vir a ser a acusação contra Trump. Embora não estejam explicitados quais são exatamente os crimes pelos quais pretendem acusar Trump, os congressistas escrevem que “Trump violou o seu juramento constitucional de exercer fielmente o cargo de Presidente dos EUA e de fazer o melhor que conseguir para preservar, proteger e defender a Constituição dos EUA“.
Articles of Impeachment for introduction, so proud of everyone co-leading this effort with us.
We need to move quickly to remove this President from office. pic.twitter.com/vbZtA7g6fc
— Ilhan Omar (@IlhanMN) January 7, 2021
“A cada hora que Donald Trump se mantém no cargo, o nosso país, a nossa democracia e a nossa segurança nacional continuam em perigo. O Congresso tem de agir imediatamente para manter o povo deste país em segurança e abrir um precedente de que este comportamento não pode ser tolerado”, lê-se num breve excerto do apelo partilhado pelos congressistas através do Twitter.
Em declarações à edição americana do The Guardian, o constitucionalista norte-americano Frank Bowman considerou que é possível argumentar que Trump “fomentou a sedição“, ou seja, a tentativa de derrubar as instituições democráticas do país — um crime potencialmente punido em julgamento de impeachment. Segundo Bowman, cabe ao Congresso determinar quais as práticas cometidas por Trump que podem corresponder ao critério para a destituição. O jurista lembra, inclusivamente, que essas práticas não necessitam de ser crimes, mas podem ser atos considerados prejudiciais ao funcionamento da democracia — como, por exemplo, a tentativa de “minar os resultados legítimos de uma eleição legal”.