O Estado foi alvo de uma ação judicial por causa de decisão tomada em maio pelo Ministério do Ambiente de suspender a entrada de resíduos importados em Portugal, mesmo que a sua deposição já estivesse autorizada pelas autoridades competentes.
A ação foi apresentada pela empresa italiana Enski Ambiente em agosto depois de mais de uma centena de contentores ter sido barrada pelas autoridades ambientais nos portos de Leixões e Sines. O processo entregue no Tribunal Administrativo de Lisboa visa a Presidência do Conselho de Ministros e a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e pede uma indemnização de mais de oito milhões de euros.
Em causa neste processo não estão os resíduos que chegaram a Portugal, e cuja remoção e tratamento (deposição) vai ser suportada pelo Estado português (num valor de dois milhões de euros que pode até ser ultrapassado), mas as toneladas que ainda estavam para vir e que, segundo o autor da ação, estavam devidamente autorizadas pela entidade competente em Portugal, a APA.
Governo impediu resíduos italianos de entrar, mas vai pagar a conta do seu tratamento em Portugal
A ação contesta a legalidade da disposição aprovada em maio no decreto-lei que define as medidas excecionais e temporárias para combater a pandemia, a qual suspendeu a importação de resíduos até final do ano. O decreto-lei da autoria do Conselho de Ministros — daí a Presidência do Conselho de Ministros ser igualmente processada — determina que a suspensão apanha as autorizações dadas até ao final do ano. O Governo determinava ainda à APA que elaborasse um relatório sobre a quantidade de resíduos em aterros e capacidade destes equipamento até novembro.
De acordo com esta decisão só seriam autorizados a entrar as cargas que já estivessem em águas nacionais, o que levou à apreensão dos resíduos que entrassem no território português depois de maio. Ora na ação entregue no Tribunal, Enki indica que participou (e ganhou) um concurso público lançado pela região italiana da Campania, onde se situa a cidade de Nápoles, para proceder à remoção dos resíduos urbanos. A empresa assinou um contrato de prestação de serviços com as entidades locais para a remoção de resíduos para aterros em Portugal através de sete transferências.
Estas transferências foram devidamente autorizadas, sublinha a Enki, pela entidade italiana responsável pela expedição de resíduos. Também a APA autorizou de forma expressa todas as transferência, ao abrigo do regulamento europeu de transporte internacional de resíduos, acrescenta.
A Enki indica ainda ter concretizado algumas destas transferências, sem que a APA tivesse colocado obstáculos, tendo ainda pago a taxa de gestão de resíduos cobrada em Portugal para a deposição em aterro. A suspensão extraordinária adotada no quadro das medidas de resposta ao Covid impediu a empresa de executar a totalidade do contrato que tinha feito com as entidades municipais italianas, daí o prejuízo e o pedido de indemnização.
Empresa importadora conseguiu trazer 28% dos resíduos autorizados
Em respostas ao Observador, a Agência Portuguesa do Ambiente confirma o processo judicial que se encontra em fase de articulados. A APA diz que a empresa em causa pagou a taxa correspondente à apreciação do processo de notificação para a movimentação transfronteir
iça de resíduos, mas assinala que isso não corresponde à taxa de gestão de resíduos que tem outro âmbito. E confirma que a empresa italiana tinha já executado 28% da quantidade de resíduos previstos chegarem a Portugal quando foi dada ordem de suspensão. As autoridades ambientais travaram a entradada de 3,6 mil toneladas de resíduos oriundos de Itália, acomodados em 144 contentores que aportaram a Leixões (36) e a Sines (108).
A APA assinala ainda que, segundo o regulamento comunitário que regula os movimentos transfronteiriços de resíduos, desde a expedição ao destino, as autorizações concedidas têm a autorização máxima de um ano. A Agência Portuguesa do Ambiente justifica ainda a suspensão decretada em maio com “a situação excecional de pandemia e os seus reflexos previsíveis no aumento do envio de resíduos para aterro”.
A APA refere que entregou no prazo previsto, final de novembro, ao Ministério do Ambiente, o relatório sobre a capacidade nacional dos aterros de resíduos. Questionado pelo Observador, o Ministério do Ambiente e Ação Climática remeteu todos os esclarecimentos pedidos para a APA.
No processo consultado pelo Observador, a Enski, uma empresa com sede em Milão, pede a condenação da APA à adoção de condutas necessárias ao restabelecimento dos direitos e interesses violados pelos atos administrativos ilegais, nomeadamente à plena produção dos atos autorizados e ilegalmente suspensos. O Observador contactou um dos responsáveis da empresa italiana e o advogado que o representa neste processo, o antigo governante do PSD, José Eduardo Martins, que não prestaram esclarecimentos adicionais.
APA paga 1,6 milhões à MSC para tirar resíduos dos portos. Resíduos italianos pode custar mais de 2 milhões a Portugal
A Agência Portuguesa do Ambiente celebrou entretanto um contrato com uma das maiores empresas de marinha mercante, a MSC (Mediterranean Shipment Company) para a aquisição de serviços de movimentação e armazenagem de resíduos e lixos não-perigosos.
O contrato publicado no portal base com data de 23 de dezembro remete para a decisão de suspensão da importação de resíduos e tem o valor de 1,6 milhões de euros. Este montante representa 80% da despesa de até 2 milhões de euros que o ministro do Ambiente remeteu para o Fundo Ambiental para resolver o problema criado pela retenção nos portos de Leixões, e sobretudo Sines, de 144 contentores com os resíduos italianos.
Nos esclarecimentos prestados ao Observador, a APA diz que o valor total da operação ainda não está avaliado, mas reconhece que o “custo que apresentará maior valor será o relativo ao pagamento das despesas de mobilização e armazenagem dos contentores nas áreas do Porto de Sines e Leixões”, onde estiveram várias semanas depois do seu desembarque ter sido impedido. A APA confirma que ainda que os resíduos já removidos do Porto de Sines tiveram como destino os aterros geridos pela empresa pública Águas de Santo André no litoral alentejano que irá ainda receber os que chegaram ao Porto de Leixões.
Portugal não é o único país a fechar a porta ao lixo italiano. Em novembro, a Tunísia impediu o desembarque de 280 contentores de resíduos vindos de Itália e abriu uma investigação à importação ilegal desta carga que foi descrita como resíduos urbanos, mas que, segundo a imprensa local incluirá resíduos tóxicos, nomeadamente hospitalares. As autoridades tunisinas anunciaram a intenção de mandar a carga para o país de origem.
Portugal é caixote de lixo da Europa? Porque alguns nos chamam o “paraíso” para os resíduos italianos
Apesar do Covid ter sido o pretexto para fundamentar esta suspensão que, como refere o próprio decreto-lei, apanha entradas de resíduos já previamente autorizadas, a chegada de lixo estrangeiro aos aterros nacionais estava a gerar embaraço ao Governo, perante os crescentes protestos das populações que residem à volta destas instalações. Valongo (Sobrado) tem sido um dos palcos mais regulares destes protestos, mas a contestação estende-se por vários pontos do país, da Trofa à Sesimbra (Zambujal).
Meio milhar de automobilistas realizou buzinão contra aterro em Valongo
Uma das razões pelas quais Portugal é tão atrativo reside no facto de o preço cobrado para a deposição em aterro de resíduos urbanos ser muito mais baixo que na maioria dos países europeus de origem. A taxa de 11 euros por tonelada foi duplicada para 22 euros em 2021, com o objetivo de desincentivar a deposição em aterro e fomentar a reciclagem. Mas ainda assim é uma das baixas cobradas na Europa, onde os preços podem atingir dezenas ou até mais de uma centena de euros por tonelada. Estas diferenças fazem com que a importação de resíduos seja um negócio muito apetecível para operadores internacionais, mas também para as empresas nacionais que gerem os aterros.
Relatos na imprensa italiana descrevem Portugal como um “paraíso” que se tornou fundamental para a região da Campania poder livrar-se dos resíduos urbanos para o qual não tem infraestruturas suficientes ou que são demasiado caras. A região onde fica a cidade de Nápoles ficou conhecida no passado pelo envolvimento da organizações mafiosas nos negócios de gestão de lixo.
Um artigo de opinião publicado em fevereiro deste ano pelo jornal online italiano Fanpage refere que Portugal recebeu 331 mil toneladas de resíduos de outros países europeus, sendo Itália, o maior exportador.
Os destinos têm sido os aterros do Sobrado em Valongo, Setúbal e Seixal onde está instalada a empresa Gsr, que segundo este artigo é um parceiro importante da Região da Campânia e da Cidade de Nápoles, tendo recebido parte dos resíduos enviados para o exterior na crise que resultou da necessidade encerrar o incinerador Acerra para manutenção em 2019.
É neste quadro, e sob a pressão da população e de partidos da oposição, que o ministro do Ambiente tem procurado fechar as portas dos aterros nacionais ao crescente fluxo de lixo vindo do estrangeiro, sobretudo de Itália. Questionado no Parlamento em maio, João Pedro Matos Fernandes assegurou que “Portugal nunca foi o caixote de lixo da Europa e, com as medidas que tomámos, nunca o virá a ser”. Ao mesmo tempo, até 15 de maio de 2020 foi impedida a entrada de 246 mil toneladas de lixo de outros países, como consequência do despacho que instituiu a oposição sistemática à sua importação.