É dia de festa no Chega/Santarém. A sede local do partido, um espaço exíguo forrado com cartazes de André Ventura, ensanduichado entre a Igreja Evangélica da Assembleia de Deus de Santarém e um alojamento local, era finalmente inaugurada. Doze minutos depois da hora marcada, às 16h12, Ventura chega com o aparato dos três Mercedes pretos que compõem a comitiva mais restrita. Antes, uma carrinha branca de caixa aberta tinha dado voltas ao quarteirão com o megafone aos gritos. Os fiéis, já muito entusiasmados, não escondem a excitação com a chegada do líder. Cumprimentam, gritam, sorriem, emocionam-se em alguns casos. Ventura acena, entra na sede, abençoa o espaço e deixa a promessa: esta é só a primeira pedra de um projeto muito maior.
Ao terceiro dia, André Ventura voltou à estrada e não escondeu a satisfação. Depois de na terça-feira ter cancelado todas as ações de campanha à boleia do negativo-positivo-negativo de Marcelo Rebelo de Sousa, o líder e candidato do Chega aproveitou o coreto de Santarém para pregar aos seus e agradecer aos céus. “Pudemos retomar a nossa ação depois dos contratempos que tivemos. Foi um sinal dos céus para continuarmos, para continuarmos a luta que temos feito contra este sistema corrupto e desadequado que nos governa”, atirou Ventura.
Não se sabe o que pensarão os céus sobre o sistema político português, nem tão pouco sobre o programa político do Chega. Mas Ventura não deixou dúvidas sobre o que pensa de Marcelo Rebelo de Sousa. Aproveitando o facto de o candidato-Presidente não ter estado presencialmente no debate a sete transmitido pela RTP, o candidato do Chega acusou Marcelo de falta de coragem por não “assumir responsabilidades pelo estado a que chegou Portugal”.
Com mais de 100 pessoas a assistir ao mini-comício, com muitas máscaras mas pouco distanciamento, Ventura voltou a trazer o ‘nós’ — os polícias, os pensionistas, as pessoas comuns — contra o ‘eles’ — os bandidos, os que não trabalham, os políticos — para o centro de um confronto virtual que quer alimentar, provocar e fazer crescer. Por quatro vezes repetiu que os segundos eram responsáveis pela “vergonha do país em que vivemos” e por quatro vezes desafiou os primeiros a provocarem o tal “terramoto político” que quer para 24 de janeiro. “Pensam que somos estúpidos mas estamos há anos demais a aturar isto”, chegou a dizer, apelando ao ressentimento e à desilusão de muitos dos que o ouviam ali e que o ouvem todos os dias.
A assistir, homens, muitos, jovens adolescentes, alguns mas com a testosterona nos píncaros, mas também mulheres e crianças, todos vibravam com cada palavra do líder do Chega. À margem do palco, mais afastada, uma mãe ia explicando à filha — pouco mais de 1o, 11 anos — que Ventura representava os bons e que António Costa era o “mau”.
E quem está com os ‘maus’ é “cúmplice”, como disparou Ventura contra Marcelo. E quem está com os ‘maus’ não pode defender os ‘bons’, sugeriu quando se referiu Ana Gomes, a mais apupada da tarde, que horas antes tinha estado numa esquadra da PSP de Santarém ao lado, alvitrou Ventura, de uma cigana. “Pelas imagens parecia uma cigana…”, riu-se.
“A mesma candidata que disse que as polícias estavam a ser influenciadas pela extrema-direita, tem o desplante de visitar uma esquadra da polícia. Isto é o típico de política que queremos em Portugal. Ana Gomes põe-se ao lado de uma cigana à frente de uma estação de polícia e diz eu ‘também defendo a polícia’. Está aqui para fazer tudo e o seu contrário’”, continuou Ventura.
Ao lado do palco, os homens do terreno faziam sinais de que o discurso — de cerca de 15 minutos — estava a entrar na reta final e que era o momento de aumentar os gritos de apoio. Não era preciso pedir. Por esta altura já os apoiantes estavam rendidos. Ventura bebia desse entusiasmo e insistia no ataque a Ana Gomes. “Não esquecemos como ofendeu a polícia, como ofendeu a Justiça, como ofendeu os portugueses de bem quando chamou Paulo Pedroso para seu diretor de campanha.”
“Muito bem!”, devolviam-lhe, aos gritos, os apoiantes. A três jovens rapazes, com capotes modernos, quase se lhes rebentavam as veias da garganta. Ventura estava pronto para a última das muitas promessas que deixou naquela tarde: “Levarei a vossa voz até ao dia 24 e para lá do dia 24. Este movimento ainda está agora a começar. Aqueles que pensam que no dia 24 a nossa força morre o nosso aviso é este: ‘Ainda estamos apenas a começar’”.
Jerónimo, o “avô bêbado”, o batom de Marisa e o esqueleto de Marcelo
Até lá, Ventura terá ainda muitos quilómetros de estrada. Esta quarta-feira, terminou a noite em Portalegre, para um novo comício na cidade alentejana em que o Chega teve a maior percentagem de votos nas eleições legislativas e onde Ventura apresentou a sua candidatura presidencial.
Sem metade da massa humana que o recebeu em Santarém — talvez pelo adiantado da hora e por ter chegado quase 50 minutos para lá das nove da noite, hora agendada –, André Ventura não deixou de aparecer especialmente espirituoso e a prometer o impossível aos apoiantes. “Vamos fazer milagres em Portugal.”
Apesar da importância do divino no léxico do candidato, Ventura foi muito terrestre quando decidiu atacar os seus adversários. Jerónimo, “aquele avô bêbado que a gente tem em casa”. João Ferreira, o “operário beto de Cascais”. Marisa Matias, que “não está tão bem em termos de imagem”, que parece que lhe “devem dinheiro e ninguém lhe pagou”, que “pinta os lábios como se fosse uma coisa de brincar”. Ana Gomes, “que para contrabandista falta pouco”. Ou Marcelo Rebelo de Sousa, que parecia um “esqueleto durante o debate”.
Pode ouvir aqui a reportagem da Rádio Observador em Santarém e Portalegre:
Da plateia, vinham gritos de incentivo como quando alguém atirou “ordinária” assim que ouviu o nome de Marisa Matias. Embalado pelos poucos que ali estavam, Ventura continuou a falar nos “sonhos” que ‘eles’, os políticos do sistema, deixaram por concretizar e apelar à força do ‘nós’.
“Todos os que são privilegiados do regime protestam contra nós. Só pode significar uma coisa: estamos no caminho certo. Esta campanha foi de todos contra nós. Estamos no caminho certo para derrotar este sistema e derrotá-lo já no dia 24 de janeiro”, ensaiou Ventura.
É assim no Parlamento, foi assim nos debates, foi assim em Portimão, Faro e Santarém e foi assim também em Portalegre: mesmo que ele próprio tenha sido parte integrante do sistema político e profissional que tanto contesta até há pouco tempo, Ventura quer devolver o sentimento de pertença aos que foram, de uma forma ou de outra, esquecidos no caminho da democracia.
“Vocês nunca estarão sozinhos. Serei sempre a vossa voz. Mesmo quando erro, mesmo quando falho, serei sempre a vossa voz. É um eu que abarca a vossa voz e o vosso sentido”, prometeu Ventura. Resta saber o que dirá essa voz quando tiver oportunidade de se pronunciar.
Este artigo foi atualizado ao longo do dia