Portugal pode registar nos próximos dois meses tantas mortes por Covid-19 como a totalidade dos óbitos provocados pelo novo coronavírus desde março até agora.

Manuel Carmo Gomes, epidemiologista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e um dos envolvidos no aconselhamento científico ao Governo, alertou esta segunda-feira, em declarações ao Observador, que “dificilmente” o país escapará de atingir as 200 vítimas mortais em 24 horas por Covid-19 dentro de menos de uma semana. Pode mesmo chegar aos 220, disse.

Nem mesmo a desaceleração no aumento do número de novos casos de infeção por SARS-CoV-2 descansa o especialista. O ritmo dessa desaceleração é semelhante ao que se assistiu nas duas últimas semanas de março, no início do primeiro confinamento, mas agora há uma desconfiança que não se levantava nessa altura: ela pode ser só um artifício matemático, uma vez que, por falta de recursos humanos para realizar os inquéritos epidemiológicos (que encaminham possíveis casos suspeitos para testagem), o número de infetados detetados pelas autoridades de saúde torna-se limitado.

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Portugal pode estar num “falso planalto” com 10 mil casos

Um dos fenómenos que sustenta a desconfiança de Manuel Carmo Gomes é a deteção de mais de 10 mil casos anunciada no último domingo — o quinto dia seguido com mais de 10 mil casos de infeção pelo novo coronavírus reportados pela Direção-Geral da Saúde (DGS). O epidemiologista aponta que, tendo em conta o comportamento da doença e o funcionamento das autoridades de saúde, com números desta ordem a um domingo seria de esperar que, nos dias anteriores, eles fossem muito superiores.

Não foi isso que aconteceu e, por isso, o epidemiologista pensa que “estamos a entrar num falso planalto causado por esta incapacidade de acompanhar o número real de casos que estão a ocorrer”. Tendo em conta os dados desta segunda-feira, julga-se que 12.300 pessoas estejam a ser contagiadas pelo novo coronavírus, mas a média de diagnósticos pelas autoridades de saúde fica-se pelos 9.600. E esta margem de casos positivos por detetar está a aumentar.

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O epidemiologista aponta que Portugal ainda pode atingir os 14 mil contágios por dia, mas muitos podem ficar por encontrar. A teoria ganha corpo quando se olha para o número de internados pelo desenvolvimento de quadros clínicos mais severos de Covid-19: a taxa de aumento de entradas hospitalares “não para de crescer”. E “esses são daqueles indicadores que não mentem”, sublinha Manuel Carmo Gomes:

Estamos um pouco receosos de que esta desaceleração não se deva a uma desaceleração real, mas sim por não estarmos a detetar os casos todos”.

Inquéritos epidemiológicos acumulam-se por falta de pessoal

O motivo deste “falso planalto” pode ser um “problema sério de acumulação de inquéritos epidemiológicos”, aponta o especialista. Manuel Carmo Gomes considera que Portugal tem espaço para aumentar a capacidade de testagem mas, mesmo que assim seja, há outro ponto crítico que subsiste: não há recursos humanos para fazer os inquéritos epidemiológicos. Portanto, ou se resolve esse problema “ou então temos mesmo que parar os contactos”: “Não há outra maneira de interromper isto”, garantiu.

A consequência de não haver técnicos suficientes para fazer os inquéritos epidemiológicos é “a testagem ao calhas”. Nesse caso, a epidemia pode continuar a subir sem que as autoridades de saúde ou a comunidade científica consigam medir o pulso à doença e perceber a velocidade a que ela está a evoluir. Ou seja, pode ter-se números de casos reportados que estão muito aquém do número real de casos.

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Mas a falta de recursos humanos não é de estranhar e, mesmo que seja resolvida, pode não bastar, sublinha Manuel Carmo Gomes:

É fácil de compreender que, quando uma epidemia está a crescer exponencialmente, estes inquéritos também crescem exponencialmente. E não há recursos humanos que suportem isto. Até podíamos reforçar os recursos humanos, mas não é suficiente porque os números aumentaram exponencialmente”.

Os erros do Natal e o problema das escolas

Os números que Portugal tem registado são reflexo dos comportamentos do Natal. Já espelham o que se passou depois do Ano Novo, mas também os contágios provocados pelas pessoas que, tendo sido infetadas na época natalícia, escaparam ao radar das autoridades de saúde. Mesmo com um risco de transmissão igual a 1 (ou seja, cada pessoa infetada contagia outra), os cinco mil casos que podem ter ficado por diagnosticar nos dias seguintes ao Natal terão dado origem a outros tantos. É isto “que faz com que isto rapidamente expluda”.

Então, em que circunstâncias podia Portugal ter passado um Natal em segurança com as regras que foram impostas nessa época? Manuel Carmo Gomes disse que um alívio das medidas daquela ordem só seria aceitável se o país tivesse 500 a 600 casos diários e nunca mais que 2.500 — como se chegou a calcular para a época natalícia após o pico de 18 de novembro. O epidemiologista sublinha que seriam, ainda assim, números muito altos, mas mais “fáceis de gerir”. Mais do que isso “faz com que a epidemia rapidamente expluda” até à situação atual.

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Quanto às escolas, o especialista da Faculdade de Ciências continua a defender o ensino à distância para todos os estudantes a partir dos 12 anos ou, pelo menos, a partir do ensino secundário. Ciente da incerteza científica em torno deste tópico, Manuel Carmo Gomes argumenta que o encerramento seria de entre quatro a cinco semanas — o suficiente para “travar isto a sério”.

É que o grupo etário com maior incidência de casos é o dos 18 aos 24 anos. E aquele em que ela mais está a aumentar é a faixa etária dos 13 aos 17 anos. Embora admita que a escola possa não ser o palco destas infeções, o epidemiologista teme que a porta dos estabelecimentos, os transportes públicos e os encontros entre os jovens o sejam. Fechar as escolas seria travar essa mobilidade.