A Comissão Europeia quebra finalmente o silêncio e critica publicamente a decisão norueguesa de cortar unilateralmente à UE a quota de pesca de bacalhau em Svalbard — tendo em conta o estatuto muito especial deste arquipélago. E admite mesmo, em declarações ao Observador, tomar “medidas adequadas” para impedir que essa redução avance.
Em vésperas de Natal (e do acordo entre a UE e o Reino Unido), a Noruega ditou novas regras para o bacalhau de Svalbard, impondo um corte para este ano no máximo de capturas dos estados-membros, de 24.566 para 17.885 toneladas.
Uma semana depois, o Observador questionou pela primeira vez o executivo liderado por Ursula von der Leyen, mas a resposta, dada a 4 de janeiro, indicava apenas que estava “a analisar a situação”. Agora, no entanto, Bruxelas abre conflito com a Noruega — há uma nova “guerra” do bacalhau.
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Em respostas por escrito ao Observador, um porta-voz da Comissão indica que o corte assumido pela Noruega “corresponderia às capturas reais dos navios da UE nas águas de Svalbard com base em registos recentes para 2013-2018”. Uma decisão que tem a discordância da Comissão porque os limites às pescas em Svalbard “decorrem dos direitos dos estados-membros previstos no Tratado de Paris de 1920”. Na prática, “navios e cidadãos da Noruega, de 21 Estados-Membros da UE e de 24 outros países têm os mesmos direitos de pesca nas águas em torno de Svalbard”.
A Comissão explica que “definiu as possibilidades de pesca para o bacalhau do Ártico em águas internacionais para 2021” tendo como base esse procedimento “há muito estabelecido”, e nota que “até agora, a Noruega nunca contestou” o estabelecimento autónomo, por parte da UE, do total admissível de capturas (TAC) naquela região.
Fica claro o descontentamento de Bruxelas. “Lamentamos a decisão da Noruega de romper com esta abordagem, que estava consolidada, ao fixar unilateralmente possibilidades de pesca para a União Europeia, que são substancialmente inferiores às que a UE deveria ter”, considera o porta-voz da Comissão. “Também lamentamos não termos podido discutir o assunto com antecedência com as autoridades norueguesas”.
Apesar de a Noruega não pertencer à UE e de ter autoridade sobre o arquipélago, não pode, em teoria, alterar de forma unilateral a quantidade de bacalhau capturado nessa zona pelos países comunitários (fixado anualmente em 3,77% do total disponível). Isto porque um tratado assinado pelos vencedores da Primeira Guerra Mundial, que entregou Svalbard aos noruegueses, decretou a igualdade no acesso dos recursos desse arquipélago a todos os países signatários.
Mais de 50 anos depois, no entanto, o país nórdico decidiu estabelecer uma Zona de Proteção Pesqueira que contornava o tratado assinado em Paris e entrava em choque com os interesses europeus. A questão acabaria sanada ainda na década de 80 com um acordo tácito entre a UE e a Noruega, que é agora posto em causa.
A Comissão avisa que “esta abordagem pela Noruega está atualmente sob escrutínio”, tendo em conta o tratado assinado em 1920, porque “a aceitação pela União Europeia dos regulamentos de pesca propostos pela Noruega” ao longo dos anos, relativos às águas em torno de Svalbard, foi sempre “condicionada à aplicação dos regulamentos de uma forma não discriminatória”. Isto é, “todas as partes no tratado gozam igualmente dos direitos de pesca nas águas em torno de Svalbard”, com base “em pareceres científicos e respeitados por todas as partes interessadas”.
Por isso, a Comissão “está atualmente a analisar a decisão da Noruega e as medidas adequadas para a impedi-la”, embora não clarifique quais. O executivo europeu “tenciona abordá-las com os estados-membros”.
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A questão das quotas de pesca em Svalbard não se fica pela decisão norueguesa. No âmbito do acordo de ‘divórcio’ com o Reino Unido, os britânicos ficaram com 25% do bacalhau a que a UE (incluindo o Reino Unido) tem tido direito naquela zona, em vez da habitual quota de 12%.
A decisão mereceu contestação por parte da indústria pesqueira portuguesa, mas, em resposta ao Observador, a Comissão garante agora que “as negociações do Acordo de Comércio e Cooperação com o Reino Unido foram conduzidas no pleno respeito das diretrizes de negociação dadas pelo Conselho” e que “as atividades de pesca relevantes dos estados-membros em causa foram mantidas”.
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Questionada sobre esta nova divisão de quotas no acordo, Bruxelas indica que se baseiam “em históricos recentes para 2012-2016”. Não fica claro, no entanto, porque é que foi escolhido este período, nem a razão pela qual as duas partes tiveram em conta para essa divisão o bacalhau efetivamente pescado, em vez das habituais quotas.
A questão é relevante porque os estados-membros fazem trocas circunstanciais de quotas para poupar custos. Por exemplo, Portugal captura muito menos bacalhau em Svalbard do que o volume a que teria direito nesse arquipélago, porque concentra esforços em torno da Noruega e do Canadá. Por essa mesma razão, o Reino Unido tem estado a capturar sucessivamente mais bacalhau em Svalbard do que aquilo a que teria direito no papel.
E sairá Portugal prejudicado? O Governo, que inicialmente disse ser um lapso, referiu há duas semanas ao Observador que, afinal, foi falso alarme, sem consequências para o país, porque as regras da UE “favorecem os países com quotas mais baixas”.
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O Ministério do Mar remeteu o Observador para um regulamento comunitário, de 1990, que define a chave de distribuição de possibilidades de pesca entre estados-membros nesta zona, só que, sem mais explicações, o regulamento não permite concluir que Portugal fica livre de cortes por esta via. As explicações foram prometidas pelo ministério para mais tarde, mas o Observador ainda aguarda resposta.
A juntar a estes imbróglios de Svalbard há também o atraso no acordo com a Noruega para as pescas ao longo da Zona Económica Exclusiva norueguesa (200 milhas náuticas, equivalente a 370 km, ao longo de toda a costa). Uma questão também importante para a indústria pesqueira portuguesa, tendo em conta que a pesca do bacalhau decorre de fevereiro a abril nesta região.
Para já, decorrem negociações entre a União Europeia, a Noruega e o Reino Unido para estabelecer as oportunidades de pesca em stocks partilhados. Só depois desse acordo é que a UE e a Noruega vão discutir o acesso à Zona Económica Exclusiva norueguesa — conversações que deviam ter decorrido no ano passado, mas que foram adiadas por causa das negociações do Brexit. Até lá, as águas da Noruega estão “fechadas”.
Artigo atualizado às 19:50, clarificando o calendário das negociações