Faz este sábado, dia 27 de fevereiro, 40 anos que se estreou, nos desaparecidos Éden e Quarteto, em Lisboa, “Kilas, o Mau da Fita”, de José Fonseca e Costa (1933-2015), um dos maiores sucessos da história do cinema português, que chegou aos 120 mil espectadores (um grande filme estrangeiro fazia, então em Portugal, entre 400 e 500 mil entradas). É um número impressionante para as bilheteiras de um país em má situação económica e ainda na ressaca do período revolucionário, e em que o grande público continuava de costas viradas para o cinema caseiro. Um desencontro que já vinha muito de trás e que o 25 de Abril havia acentuado ainda mais, com a proliferação de um cinema ideologicamente muito carregado à esquerda e cansativamente ativista e doutrinário.

“Kilas, o Mau da Fita” não fica na história apenas pelo atípico sucesso comercial. Antes de muitos dos seus colegas, José Fonseca e Costa teve a perceção que o cinema português não podia ficar-se pelo autorismo de prestígio — mas de nicho — e pelo limitado e fanático registo “revolucionário e de massas”. Kilas significa a tentativa – uma das primeiras da altura — de oferta a um espectador português muito de pé atrás, de um tipo de filme que, embora ainda marcado politicamente, quer dar expressão romanesca à realidade do país e de Lisboa, representando uma alternativa de entretenimento de qualidade com boa execução técnica e artística e potencialidade comercial. Uma linha criativa que Fonseca e Costa viria a seguir e a desenvolver com coerência na sua filmografia, sobretudo através de adaptações literárias.

Apresentando um elenco de atores portugueses e brasileiros, estes então muito populares entre nós devido ao advento das telenovelas na RTP, “Kilas, o Mau da Fita”, tem música de Sérgio Godinho (também autor do argumento, com Fonseca e Costa e o escritor brasileiro — e futuro realizador — Tabajara Ruas) e apresenta uma visão entre o realista e o fantasioso do “bas-fond” alfacinha, com piscadelas cinéfilas e laivos de comédia à portuguesa, mas já cansada e decadente.

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Mário Viegas encabeça o elenco no papel de Kilas, aliás Rui Tadeu, um marginalzeco lisboeta que vive na casa da Madrinha (Milú) e à custa de Pepsi Rita (Lia Gama), artista de variedades e ocasionalmente prostituta. Ele lidera um grupo de marginais manhosos e recebe a incumbência, por parte do misterioso Major (Lima Duarte), de vigiar uma casa suspeita, metendo-se numa intriga política que envolve uma rede bombista. Aqui ficam 20 factos sobre esta fita de referência do cinema nacional pós-25 de Abril. 

1. O filme é uma co-produção com a brasileira Penta Filmes, fundada no Rio de Janeiro em 1975 por Galveias Rodrigues, proprietário da Telecine-Moro, que se instalou no Brasil na sequência dos desmandos e ocupações selvagens do PREC.

2. Foi a terceira longa-metragem de Fonseca e Costa, após “O Recado” (1971) e “Os Demónios de Alcácer-Kibir” (1976).

3. Dos dois atores brasileiros que entram em “Kilas” eram já conhecidos em Portugal: Natália do Vale, que faz de Lily Bobó, tinha participado na telenovela “Gabriela”. Lima Duarte, o Major, era já uma vedeta no Brasil, mas só se tornaria conhecido cá alguns anos mais tarde pelo seu papel do “matador” Zeca Diabo na telenovela “O Bem-Amado”. Ambos foram dobrados.

4. Mário Viegas tinha aparecido apenas dois filmes antes: “O Funeral do Patrão”, de Eduardo Geada (1975), e “O Rei das Berlengas”, de Artur Semedo (1978). Voltaria a participar em mais filmes de Fonseca e Costa, caso de “Sem Sombra de Pecado”, em 1983.

5. Este foi o último filme de Milú, que personifica a Madrinha. Desde 1969, quando rodou “O Diabo Era Outro”, de Constantino Esteves, que a atriz e cantora não fazia cinema.

6. “Kilas” demorou três anos a rodar e concluir (1978-80), tendo passado por várias vicissitudes de financiamento que levaram à interrupção das filmagens.

7. Deve-se a David Mourão-Ferreira, secretário de Estado da Cultura em 1979, no governo de iniciativa presidencial que tinha como primeiro-ministro Mota Pinto, líder do então PPD, a resolução dos problemas de dinheiro de “Kilas”, com dois apoios que permitiram a sua conclusão.

8. Nos intervalos da rodagem de “Kilas”, Fonseca e Costa realizou uma série de comédia com Ivone Silva para a RTP, “Ivone Silva, A Faz Tudo”. Foi exibida na RTP2, então dirigida por outro cineasta, Fernando Lopes.

9. Um dos atores, Luís Barradas, morreu durante a produção, e Fonseca e Costa teve que eliminar a sua personagem durante a montagem.

10. “Kilas” teve a sua estreia internacional no Festival de Locarno de 1980, e a nacional no Festival de Cinema da Figueira da Foz, no Verão do mesmo ano.

11. A má reação da crítica portuguesa na Figueira da Foz levou Fonseca e Costa a adiar a estreia comercial e a rodar o filme por vários festivais de cinema internacionais.

12. Apesar de ser uma co-produção com o Brasil, o filme nunca chegou a ser visto em estreia comercial neste país.

13. Fonseca e Costa contrariou o hábito da estreia dos filmes portuguesas apenas num cinema, arriscando a exibição em quatro salas: Éden e Quarteto em Lisboa, Águia d’Ouro no Porto e Gil Vicente em Coimbra.

14. Desde 1967 que um filme português não se estreava no Éden. O último havia sido “Sete Balas para Selma”, de António Macedo, um policial de ação, tão atípico então como “Kilas” na altura.

15. O expressivo cartaz de “Kilas” é da autoria do artista gráfico José Brandão.

16. Um dos poucos críticos que defendeu a fita na altura da estreia foi Vicente Jorge Silva, com um texto bastante elogioso no “Expresso”.

17. A fita esteve cinco meses em cartaz no Quarteto.

18. Ficou em exibição no Éden apenas uma semana, apesar de lá ter feito mais de 10 mil espectadores nesses sete dias.

19. “Kilas, o Mau da Fita” foi o oitavo filme português mais visto de sempre durante 40 anos, entre 1981 e 2001, com um total de 121.269 espectadores.

20. O DVD do filme está entre os títulos portugueses mais vendidos neste formato, e a edição original selada é bastante cobiçada nos “sites” de leilões.