Em 1848, o filósofo e escritor Henry David Thoreau passou uma noite na cadeia de Massachussets por se recusar a pagar impostos, dado que o dinheiro resultante destes iria subsidiar a guerra que os Estados Unidos combatiam a sul com o México pelos territórios da Califórnia, do Novo México e do Texas, de forma a aumentar a área dedicada a atividades esclavagistas. Em resultado dessa noite, Thoreau escreveria Desobediência Civil, que mais tarde viria a influenciar ativistas como, por exemplo, Gandhi ou o reverendo Martin Luther King Jr.
Há, contudo, uma certa universalidade em Desobediência Civil que leva a que a ideologia aí manifesta possa, sem grande esforço, ser apropriada por causas políticas diametralmente opostas (desde o anarquismo ao conservadorismo mais ortodoxo, passando por negacionistas da Covid ou movimentos anti-racistas), tornando-se Thoreau assim, em muitos casos, numa espécie de santo, ainda que apóstata, de todos estes credos.
Thoreau defende que nada se deve sobrepor aos imperativos de consciência, renegando a adesão a qualquer movimento que, no seu entender, pretenda substituir a nossa irrevogável individualidade por uma cega obediência a leis superiores. Por aí se compreende a sua aversão quer ao catolicismo quer às forças armadas. O cerne da sua disputa com entidades coletivas deste tipo prendia-se com a rejeição completa do famoso versículo do Livro de Jeremias onde se lê que o dever de um temente a Deus é o de se deixar moldar, como barro nas mãos do oleiro. Para Thoreau, tal como para o seu amigo Ralph Waldo Emerson e, um século mais tarde, para o filósofo William James, ideias como esta, que premeiam toda a tradição de pensamento cristã, constituíam uma inaceitável subjugação da individualidade.
Se é de louvar uma nova edição de Desobediência Civil, por parte da Ideias de Ler, importa sublinhar, contudo, que o texto tem muito a ganhar em ser lido conjuntamente com outros dois absolutamente extraordinários (Defesa de John Brown e Os Últimos Dias de John Brown) que, onze anos mais tarde, Thoreau escreveria a propósito da condenação à morte de John Brown, cabecilha de uma insurreição popular anti esclavagista que visava a libertação de escravos no Estado de Virgínia e que resultaria em sete mortos e mais de uma dezena de feridos graves (e cuja história foi recentemente transformada em série pela HBO). Foi essa a opção editorial da Antígona que, em 2005, publicou os três textos num só livro.
Em Desobediência Civil, a democracia é apresentada como uma espécie de livre-passe anonimizante que nos inocenta de tudo aquilo em que nós, enquanto membros do Estado, participamos. Sempre que um Estado onde, por exemplo, exista pena de morte mata um dos seus cidadãos, são todos os membros desse Estado quem o mata, com o dinheiro dos seus impostos, mas, acima de tudo, com o seu consentimento. Rejeitar moralmente uma coisa implica, se essa coisa for importante o suficiente para nós, bem mais do que meter um papel numa urna. Implica que nos recusemos a participar nela, seja de que maneira for, nem que isso nos force ao exílio ou, no caso específico de Thoreau, à prisão. Se um Estado nos encarregasse a nós mesmos de, por exemplo, matar um criminoso ou combater numa guerra que considerássemos injusta, decerto não o faríamos. Em certo sentido, a nossa higiene moral parece depender em grande medida dos biombos que colocamos entre nós e aquilo que fazem em nosso nome. Manifestamo-nos a protestar contra ações concretas do Estado, mas não estamos dispostos a recusarmo-nos a participar dessas mesmas ações, porque estar preso não nos dá grande jeito.
Thoreau, mais conhecido pelas suas posições ecologistas e por ter escrito Walden, Ou a Vida nos Bosques, repete em Desobediência Civil que a sua recusa em pagar impostos deveu-se menos à sua vontade de mudar o país em que vivia e mais à sua recusa em participar ele próprio na corrupção moral para que o sistema esclavagista o arrastava e que, treze anos depois, conduziria os Estados Unidos a uma sangrenta guerra civil. O escritor sublinha, aliás, que o dever de cada pessoa era apenas esse: não o de mudar o mundo, mas o de não deixar que o mundo as mudasse a elas. Se o Estado é injusto, conclui Thoreau, o lugar dos justos que nele habitam é na cadeia.
A leitura de Thoreau poderia, como se tornou desde já evidente, surgir como um salvo-conduto para, por exemplo, evasões fiscais ou grandoladas em restaurantes no Bairro Alto durante o confinamento. No entanto, importaria recordar que Thoreau e o seu herói, John Brown se predispuseram a abdicar da sua liberdade e, no limite, da sua vida em nome da luta que consideravam inadiável: a do esclavagismo. Não puseram o dinheiro em off-shores. Não organizaram uns jantares divertidos. Como Thoreau explica, a sua proposta “torna impossível uma vida moral e, ao mesmo tempo, confortável”. John Brown fez o que fez às claras, disposto a que os tiros que disparariam contra o seu corpo iluminassem a escuridão da consciência dos seus concidadãos. Talvez se John Brown fosse hoje vivo tivesse, em vez de se dar a todas estas arrelias, escrito um post partilhado à exaustão no Facebook ou um direto corrosivo no Instagram. Parece-me, ainda assim, que talvez não.
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