Título: Viajantes nos Açores. O olhar estrangeiro sobre as Ilhas desde o século XVI
Organizadora e tradutora: Maria das Mercês Pacheco
Prefácio: Isabel Soares de Albergaria
Editor: Artes e Letras
Páginas: 448, ilustradas
Preço: 22 €
Para quem se disponha a ver e saber, há um notório incremento editorial da literatura de viagens aos Açores, com publicação de inéditos e reedição de livros notáveis, agora acrescentado por esta laboriosa antologia — de quase meio milénio (1571-2010) — organizada por uma escritora de São Miguel e editada pela Artes e Letras, de Ponta Delgada, que já havia impresso e reimpresso o clássico As Ilhas Desconhecidas. Notas e paisagens de Raul Brandão (Bertrand, Lisboa, 1927 e não 1926, como ainda corre).
Se a localização, comentário e divulgação de testemunhos deste tipo — em particular os de “descobrimento científico” dos Açores —, sob a forma de livro, artigo, diário ou epistolário, sempre fizeram parte do programa de institutos regionais conscientes de que a especial posição geográfica do arquipélago entre Europa e Américas e a sua origem vulcânica eram propiciadoras dum corpo literário com valor patrimonial estabelecido por observadores ocasionais, também é verdade que o silêncio oceânico e o isolamento ilhéu reclamam, por maioria de razões, que se ouça ou leia o que esses outros ali viram e perceberam, ao longo do tempo. Livreiros que gostam de ler, e de conversar sobre os livros que mais apreciam, surgem aqui e agora — desafiando tempos muito difíceis — como editores atentos ao que a gente do seu lugar pode e deve conhecer para conhecê-lo ainda melhor, no mesmo acto conhecer-se melhor também.
Antecedentes não faltam, como bem recorda no breve prefácio Isabel Soares de Albergaria (outros mais, creio, poderiam ser chamados a esse elenco). Todavia, constituíram-se enquanto inventários estabelecidos para exposições bibliográficas de ocasião ou antologias focadas na grande riqueza documental do século XIX (como a de João Emanuel Cabral Leite, 1991, 223 pp.), mas não ousaram vir até à actualidade nem voltar aos primórdios da representação açórica na cartografia europeia, aparecendo em relatos de naturalistas e viajantes acidentais ou mesmo de aventureiros de toda a estirpe e homens do mar de carácter muito pouco recomendável, fossem piratas, corsários ou militares com navios carregados de riquezas tropicais ou escravos a seu cargo.
Há de tudo um pouco para se fazer um mundo como este, e Maria das Mercês Pacheco sabe bem ao que veio, pois, por exemplo, foi buscar breves excertos de dois relatos sobre uma extraordinária batalha ao largo da Ilha das Flores, quando a 9-11 de Setembro de 1591 o Revenge de 700 toneladas — à época o maior navio de guerra britânico, às ordens de Sir Richard Greenville, um corsário tornado vice-almirante — audaciosamente desafiou sozinho a fortíssima armada espanhola comandada por Don Alonso de Bazán, colocando a salvo o comboio de 16 ou 22 navios encabeçado por Lord Thomas Howard, que ali também se encontrava.
Neste livro ilustrado, entre 25 reproduções, de longe a melhor é sem dúvida, precisamente, a do frontiscípio de A Report of the truth concerning the last sea fight of the Revenge, por Sir Walter Ralegh Knight, com um belo desenho de Howard Pyle (1853-1911; p. 132). Na ausência de informações precisas podemos ser levados a acreditar que pertence à edição original, de 1591, mas não é assim: pertence, na verdade, à reduzida tiragem feita em 1902 por The Riverside Press, uma editora de Cambridge. A própria paisagem da capa, apenas identificada como um trabalho sem lugar e data de Louis Haghe (1806-85), litógrafo belga naturalizado inglês, com outros trabalhos feitos em Portugal, representa Vila Franca, em São Miguel, e pertence afinal à edição de 1835 de uma das obras antologiadas, o livro do capitão Edward Boid A Description of the Azores, or Western Island, from Personal Observation (“a primeira descrição global do arquipélago nos aspectos humano, cultural e geográfico”, sugeriu Pereira da Silva) — mas, por estranha razão, entendeu-se que nada disso nos devia ser dito.
Prefiro, pois, começar por aqui as críticas que entendo essencial fazer ao “modo oficinal” da organizadora, que se alheou do “protocolo” fundamental do ofício dos investigadores que consiste em deixar à vista os “andaimes” do seu trabalho, quer dizer, revelar toda a bibliografia consultada e fornecer úteis informações adicionais sobre reimpressões e traduções disponíveis.
Ao contrário de uma tradição instituída, e do bom senso recomendável, para benefício geral dos leitores ávidos por algo mais que fragmentos ou frases escolhidas e benefício específico dos estudiosos destes assuntos, que os há em cada vez maior número, Maria das Mercês Pacheco optou por dar mínimas — por dar nenhumas, seria mais exacto — informações acerca da fortuna editorial dos textos que escolheu antologiar e acerca dos livros a partir dos quais se guiou, fazendo comprida tabua rasa de todos os investigadores e tradutores que a antecederam, como os incansáveis João Hickling Anglin e Pedro da Silveira, o referido João Emanuel Cabral Leite, Henrique Aguiar de Oliveira Rodrigues, Susana Serpa Silva, Elisa Gomes da Torre, João Paulo Pereira da Silva, Ricardo Madruga da Costa e Margarida do Rego Machado, entre outros, para não insistir na mais óbvia importância de Ernesto do Canto, Francisco Afonso Chaves, Francisco Carreiro da Costa, Luís Arruda e nas grandes bibliografias organizadas por João Afonso e Chrys Chrystello. À excepção de cartas de Charles Hickling escritas em 1886, da Horta para familiares em Boston, com descrições do Faial e do Pico (resgatadas da Massachusetts Historical Society para uma bela edição do Núcleo Cultural da Horta em 2017, Os Dias de Charlie nas Western Islands), sequer indica edições recentes ou modernas dos textos escolhidos, em livro ou revista (três exemplos muito rápidos: o de Lady Brassey, de 1885, pela Cambridge University Press em 2010; o de Silas Weston, de 1856, pelo Núcleo Cultural da Horta em 2013; o de Briant Barrett, de 1813-14, pelas Letras Lavadas em 2018), ou as mais variadas plataformas digitais que entretanto tornaram acessíveis primeiras edições, que sendo conveniente ou curioso folhear, todavia não dão — nem poderiam dar — o tal enquadramento histórico-biográfico e de recepção que muito ajuda a ler melhor qualquer documento. E teria sido bastante fácil fazê-lo: o interessantíssimo Diário de um naufrágio nas Flores e no Faial, de John Fowler, excertado às pp. 272-73, por exemplo, foi publicado há escassos quatro anos pelo Instituto Açoriano de Cultura, aliás com uma apresentação esclarecedora.
Ausências podem ser notadas num riscar de fósforo, mesmo com bibliotecas encerradas: os diários das norte-americanas Catherine Green Hickling (1786-89) e Elisa Nye (1847), as cartas de Caroline Pomeroy, esposa de Charles Dabney, escritas durante uma viagem a São Miguel em 1924, todos já traduzidos e anotados em revistas açorianas de grande referência; mas também o diário do filósofo W. O. Quine num semestre sabático em São Miguel (1938-39), e o diário duma viagem de iate e umas crónicas de revista do escritor e jornalista William Buckley Jr, um grande entusiasta dos Açores, “o mais belo grupo de ilhas do mundo”, que Onésimo Teotónio Almeida comentou num livro também recente, Minima Azorica. O meu mundo é deste reino (Companhia das Ilhas, 2014). Ou, do mesmo ano, Estranhos em Terra Estranha. Cartas dos Açores 1916-1919 de Marion Hartley (ed. IAC). Mas também a parte relativa aos Açores de Narrative of the expedition to Portugal in 1832, under the orders of His Imperial Majesty Dom Pedro, Duke of Bragança, de Georg Lloyd Hodges (1833), que Anglin traduziu para a Livraria-Editora Andrade, de Angra do Heroísmo, em 1952. E — sem qualquer dúvida — o primeiro livro sobre os Açores do italiano Pierluigi Bragaglia (1963-2020), publicado em Milão em 1988.
Bem sei que trabalhos desta envergadura e alcance não se fazem numa única jornada, que alguma coisa sempre escapa até ao mais diligente e hábil dos investigadores, e que o grande fluxo turístico dos últimos tempos criou a ocasião ideal para o lançamento deste livro bilingue — o primeiro do seu género nos Açores —, permitindo a estrangeiros que não lêem português conhecer um pouco da extensa constelação de livros de viagens dedicados ao arquipélago, e num arco temporal completo, jamais almejado, como vimos de início. Uma segunda edição — que um dia virá, estou certo disso — pode, de resto, se quiser, melhorar aspectos como os acima referidos e corrigir outros, como a flagrante ausência de índices geográfico e onomástico, por exemplo. Porque ao final das contas Maria das Mercês Pacheco fez um bom trabalho de recolha, inclusive organizando o seu livro de forma temática, pessoalmente estabelecida, ao invés do convencional — igualmente legítimo, porém facilitado, simplificado, pouco inclusivo — ordenamento por ilhas (e o inclusivo tem ali de ter urgente valor), preferido por Cabral Leite na antologia oitocentista já referida. São 16 constelações, como “Vulcões & rochas”, “Baleias & emigração”, “Guerras & corsários”, “Fauna & flora”, “A montanha que predomina” e “Navegação & clima”, algo a que Isabel Soares de Albergaria chama na apresentação, creio que justamente, “demanda ontológica” (p. 7) e a autora descreve como acto de “libertar-se de uma só ilha” (p. 16), guiando os seus respigos por critérios de “premência e significado” (p. 21). A leitura afirma-se assim como experiência extremamente individual, livre, personalizada, plural, como agora se diz, na medida em que cada um de nós, lendo integralmente esse enorme conjunto de textos, haveria de escolher e destacar, muito provavelmente, quaisquer outros extractos (o admirável livro dos Irmãos Bullar, A Winter in the Azores and a Summer at the Baths of Furnas, de 1841, parece-me muito pouco representado, e não é caso único).
Leitura também é viagem (evasão é outra coisa…), e demorarmo-nos nas obras integrais o melhor que há a fazer. O livro de Maria das Mercês Pacheco aponta-nos generosamente para a grande estante açoriana e, além disso, serve-nos aperitivos…