Fora de Bruxelas e de corpo e alma em Lisboa, pronto para tentar fazer da CDU (a coligação que junta PCP e PEV) um player com mais peso na capital. Foi assim que João Ferreira se apresentou esta segunda-feira como candidato à Câmara Municipal de Lisboa, deixando a porta bem aberta para acordos pós-eleitorais — tudo dependerá da vantagem negocial com que sair da noite eleitoral autárquica — e chamando a si os “descontentes” da governação PS/BE na cidade.
No centro de Lisboa, nos jardins semi-escondidos do Museu da Cidade, a candidatura preparou um pequeno espaço, com cadeiras distanciadas, para receber jornalistas e alguns apoiantes de Ferreira, até agora o único nome conhecido da lista que concorrerá à capital. E foi ali que Ferreira se disse, enquanto candidato pela CDU, pronto a representar uma “alternativa à alternância”, mas sobretudo a “assumir todas as responsabilidades” na cidade. Até se isso implicar chegar a um acordo com um PS minoritário para dividir a governação da autarquia? “A relação de forças vai determinar se estamos em condições de construir essa governação democrática para a cidade”, respondeu.
Ainda mais claro: como o PCP “valoriza” a “pluralidade” nos executivos municipais, assim como distribui pelouros pelos vereadores da oposição quando lidera uma autarquia, também os pode “aceitar” quando está em minoria — essa decisão “vai depender muito do resultado que tiver”. Até lá fica uma garantia: o PCP não será uma “bengala para opções lesivas dos interesses da cidade a troco de eventuais responsabilidades”, mas aproveita para lembrar que nunca faltou com o seu apoio a “propostas positivas” na Câmara de Lisboa — mesmo que fossem do PS.
A memória de outras eleições e os ataques ao BE
Se o discurso parece semelhante àquele que o PCP usa para justificar a viabilização do Executivo a nível nacional… é porque é. E não é apenas aqui que se encontram semelhanças com outros argumentários do PCP. O discurso de apresentação de João Ferreira teve, também, muitas semelhanças com o que levou à campanha para as eleições presidenciais, em janeiro: rejeitando a “encenada bipolarização a que alguns recorrem para confinar as escolhas dos cidadãos” (exatamente o que dizia sobre a corrida ao segundo lugar entre Ana Gomes e André Ventura), afirmando a sua candidatura como “espaço de convergência” (em janeiro chegou a apelar repetidamente ao voto dos socialistas) e rejeitando a ideia do voto útil (de novo, nas presidenciais rejeitava que Ana Gomes corporizasse o voto útil à esquerda. Perante os maus resultados, o PCP definiria precisamente esse fator como um dos que mais contribuíram para a baixa percentagem do candidato).
Desta vez, e sem estabelecer metas específicas a atingir numas eleições em que o PCP tem uma prova de vida autárquica a fazer, a ideia é atrair os “descontentes” com esta governação para somar votos para a CDU, até porque não acredita que do bloco da direita venha “grande ameaça” em termos de resultados.
Para isso, João Ferreira não poupou críticas ao acordo alcançado entre PS e Bloco de Esquerda nas autárquicas de 2017, quando Fernando Medina falhou a maioria absoluta: começou por lembrar, logo na segunda linha do discurso, o apoio do BE; prosseguiu recordando as “promessas que em quatro anos se esfumaçaram” sobre habitação acessível na capital (uma das principais bandeiras do BE em Lisboa); continuou referindo a “passividade da atual maioria perante a degradação dos serviços de saúde”, corrigível se houvesse uma “voz firme junto do Governo” (o PCP?); e acabou defendendo que o apoio do BE ao PS acabou por “limitar o alcance” do que deveria ter sido uma boa notícia: a perda da maioria absoluta dos socialistas.
Uma farpa final, aplicável não apenas ao Bloco, mas sobretudo ao Bloco. Questionado sobre a sua candidatura repetida a Lisboa e não só (entre autárquicas, europeias e presidenciais esta será a sétima candidatura pelo PCP desde 2009), Ferreira foi rápido no gatilho: “Eu não sou permanentemente candidato. Mas em vez de nos perguntarmos porque é que a candidatura se repete, talvez seja mais inteligente perguntar porque é que alguns mudam permanentemente de candidatos. Talvez queira dizer que nós nos orgulhamos do nosso trabalho”, atacou, numa altura em que o BE tenta enterrar o fantasma do vereador Ricardo Robles, que saiu do Executivo municipal depois de uma polémica sobre o seu envolvimento num negócio de especulação imobiliária em Lisboa, da qual supostamente era um crítico vocal.
Nas primeiras eleições após a saída de Robles, o BE candidata aliás a deputada Beatriz Gomes Dias, que não fazia parte da equipa anterior e não teve nenhuma ligação ao trauma Robles — fatores que tiveram peso na escolha da candidata.
Habitação, combate à especulação e a “aberração” do aeroporto
Foi precisamente o combate à especulação imobiliária uma das bandeiras que Ferreira definiu já neste ato inaugural da candidatura, a somar à habitação acessível (e ao uso do património municipal na área da habitação), à “centralidade” dos transportes públicos, a uma aposta na programação cultural e ao combate às discriminações. Por outro lado, lamentou, a Lisboa que existe hoje é resultado das “estafadas opções” dos partidos que alternam no poder, com problemas desde a lei das rendas do tempo de Assunção Cristas à habitação pública estagnada e à “monocultura intensiva do turismo”, passando por “opções erradas de mobilidade” como a linha circular do metro.
Mesmo a calhar veio o barulho dos aviões que sobrevoavam Lisboa, pouco depois de Ferreira definir como “aberração anacrónica” o facto de o aeroporto da capital “crescer dentro da cidade” — um problema no qual “Medina e Moedas partilham responsabilidades e falta de visão”. A CDU propõe-se a oferecer “alternativa” a essas decisões — com uma promessa: a de executar melhor os “fundos nacionais e europeus” que vêm a caminho, e que Ferreira fez questão de destacar como importantes para aplicar numa lógica de “interesse público”.
Da experiência como deputado no Parlamento Europeu, aproveitou para frisar, vem também esse conhecimento sobre a melhor forma de aplicar os fundos. Agora, Ferreira, candidato repetente a Lisboa, eurodeputado e o dirigente atual mais testado do PCP — sempre apontado como possível candidato à sucessão de Jerónimo de Sousa — prepara-se para abandonar Bruxelas, em julho, exatamente doze anos de ter tomado posse como eurodeputado. O objetivo é estar focado em Lisboa, numas autárquicas que podem ser decisivas para o partido (com resultados a ter em conta também naquilo que será mais um teste para Ferreira).