Há mais de um ano que a pandemia trancou grande parte da população em casa, sobretudo aquela que figura na terceira idade. Porque o corpo funciona como um todo, os cuidados com a alimentação ou com a higiene, por exemplo, devem andar de mãos dadas com uma mente saudável. O assunto ganha especial importância em tempos de crise sanitária, mas foi por acaso que o livro “Mente Ativa, Corpo Feliz”, da Pactor, chegou ao mercado nesta fase. Há dois anos que estava a ser pensado pelas quatro autoras que o assinam — Humbertina Maia, Margarida Sobral, Ana Gonzaga e Teresa Santos, duas psicólogas clínicas e duas terapeutas ocupacionais, respetivamente, que trabalham no Hospital de Magalhães Lemos, no Porto.
O livro em questão é totalmente composto por exercícios que pretendem ocupar todas as semanas do ano. São um convite à distração e, acima de tudo, à estimulação cognitiva, tão importante para atrasar processos de demência. A ideia é introduzir no quotidiano dos idosos atividades de estímulo intelectual com foco nos pequenos prazeres da vida, sendo que os 52 conjuntos de exercícios — como sopas de letras, contas de somar e subtrair ou questionários de cultura geral — contemplam diferentes áreas de interesse, fazendo até referências à cultura portuguesa, às estações do ano e a festividades.
As atividades, agora reunidas em mais de 200 páginas, são um reflexo do trabalho anteriormente feito pelas autoras com os respetivos grupos presenciais — depois de sucessivos confinamentos, continuam a ser o único contacto durante a semana, à distância, de alguns dos idosos, os quais se queixam da solidão. Até porque, garantem as autoras, há quem esteja fechado nos quartos dos lares há um ano.
Em que contexto surge este livro, com que missão?
Humbertina Maia (HM): Trabalhamos no Hospital Magalhães Lemos, no Serviço de Psicogeriatria, e trabalhamos com pessoas que têm ou diagnóstico de demência ou suspeita de demência. Sou psicóloga, a Margarida [Sobral] também. No nosso dia-a-dia fazemos estimulação cognitiva com a nossa população. Acontece que, ao longo dos anos, fomos reunindo muito material.
O que é que se entende por estimulação cognitiva?
Margarida Sobral (MS): Fazemos exercícios que tentam estimular algumas áreas cerebrais. A maior parte das pessoas que seguimos têm défices de memória, então, fazemos exercícios que vão estimular a parte da memória, da atenção, da concentração e ainda da linguagem. Trabalhamos numa equipa multidisciplinar, com outros médicos, com psiquiatras e enfermeiros. As pessoas aparecem-nos com alguma dificuldade, umas já com demência, e nós tentamos fazer planos ajustados, que podem ser farmacológicos e não farmacológicos. Sendo psicólogas e terapeutas, apostamos fundamentalmente nas intervenções não farmacológicas. E a estimulação cognitiva é uma dessas áreas. Muitas vezes as pessoas já estão com demência, mas o que queremos é que essa evolução seja a mais benigna possível, que as pessoas tenham qualidade de vida e sejam felizes.
HM: Não queremos fazer uma estimulação cognitiva que seja aborrecida e que infantilize. O livro, no fundo, acaba por ser o resultado disso.
O livro é o resultado da vossa experiência em consulta?
MS: Queríamos, partindo da nossa experiência, chegar a um público mais largo, chegar às pessoas que ainda estão, do ponto de vista cognitivo, saudáveis. Isto surge no sentido da promoção, as pessoas estão bem e queremos que continuem bem. No livro queremos trabalhar outras áreas, como as das emoções e dos afetos.
Como é que se chega à área dos afetos e das emoções?
HM: Os exercícios são uma espécie de extensão daquilo que fazemos presencialmente (as pessoas normalmente até levam exercícios para fazer em casa). O livro está organizado por semanas, a nossa ideia é que as pessoas tenham exercícios para fazer durante todo o ano. E, no final de cada semana, existem sugestões — é nelas que procuramos abranger o indivíduo em todas as áreas, recorrendo a técnicas como a terapia da gratidão, o contacto com a natureza ou a criatividade. Em cada semana existe uma sugestão que vai ao encontro destas técnicas.
O livro surge numa altura em que existe uma pandemia. Foi coincidência?
MS: É uma questão com muita lógica. Na realidade, este livro foi sendo amadurecido de há dois anos para cá, é incrível. Há um ano, no início da pandemia, estávamos com o livro em mãos, numa altura em que os grupos foram parados, e dizíamos “Este livro já devia estar feito!”. Percebemos que ia fazer toda a diferença. Há muita gente sozinha. Ainda não recomeçámos os grupos e ligamos semanalmente para as pessoas — há aquelas que se queixam do isolamento, da solidão. Muitas vezes somos nós o único contacto durante a semana.
A pandemia aumentou o sentimento de solidão entre os mais velhos. Quão problemático é que isto pode ser?
MS: Acreditamos que há pessoas dos grupos com que trabalhamos que já terão perdido mais capacidades do ponto de vista cognitivo. Se ficarmos sentados num sofá durante muito tempo, vamos ter mais dificuldades em sair dele. Se eu não correr durante uma semana, na semana a seguir já vou ter mais dificuldade em fazê-lo, já não vou fazer os tempos que fazia na semana anterior.
HM: Em termos emocionais também está a ser muito duro para as pessoas mais velhas por estarem afastadas dos filhos e dos netos. Este afastamento, digamos, do núcleo familiar mais próximo, está a ser muito doloroso.
Há efetivamente idosos que estão fechados há um ano em casa?
MS: Sim, sim. E alguns nos seus quartos [dos lares], sem poderem sair, o que ainda é mais grave. Fechados nos seus quartos.
Conhecem exemplos desses? Estão entre as pessoas que ajudam?
MS: Sim. É dramático. Há pessoas que desde há um ano estão fechadas em lares nos seus quartos. Imagine as dificuldades que vão ter do ponto de vista motor e cognitivas! De certeza que vai haver um declínio. As pessoas já não vão ser as mesmas e, provavelmente, vai ser difícil retomarem o nível cognitivo que tinham anteriormente.
A pouca estimulação cognitiva pode andar de mãos dadas com sintomas depressivos ou com a própria depressão?
HM: Acho que sim, mas com as pessoas mais velhas ainda se passa uma outra coisa. Diria que, de uma maneira geral, depois de um ano de pandemia e de confinamento, já todos estamos em sofrimento, desde as crianças aos mais velhos. Mas os mais velhos têm uma agravante, eles próprios referem-no: têm menos tempo de vida do que uma pessoa mais nova e, portanto, estão a passar ou a desperdiçar os últimos tempos fechados, sem estarem com as pessoas de quem mais gostam.
MS: Na realidade, há muitas pessoas que já tinham tendência a quadros depressivos, mas a psicologia depressiva tem aparecido em algumas pessoas mais velhas.
O livro e os seus exercícios são uma proposta não só para estimular a mente, mas também para ajudar a passar o tempo?
MS: Não é bem passar o tempo, é usufruir da nossa vida, da possibilidade de nos centrarmos no aqui e agora, nas coisas boas que temos à nossa volta. A doutora Humbertina tinha um programa que era ir com as pessoas mais velhas aos museus e há capítulos em que damos dicas para visitarem alguns museus em formato online. Acho que as pessoas podem viajar sem saírem de casa. Temos de ir ao encontro daquilo que elas gostam, das motivações, dos interesses, daquilo que é importante em termos de tradição. Não podemos impingir estimulação cognitiva que seja ao lado, só conseguimos aderir quando aquilo que estamos a receber é algo que faça sentido.
HM: Também queremos desafiar as pessoas a experimentar coisas que não experimentaram antes, o que é fundamental para a saúde do cérebro. Imagine, pessoas que nunca pintaram… Isso pode ser um desafio. São coisas simples, não estou a falar em fazermos parapente.
Qual é o papel disto na felicidade individual? Pergunto porque o livro foi originalmente lançado no dia internacional da felicidade, a 20 de março.
HM: A felicidade, no meu entender, é feita de pequenas coisas. Estamos a destruir a felicidade quando estamos muito preocupados com o que vem do futuro ou quando estamos centrados nas coisas que já tivemos, no passado, o que acontece muitas vezes nesta faixa etária — as pessoas ficam um pouco presas ao passado, àquilo que eram. A felicidade é saber apreciar o dia de hoje e isso pode ser feito através de coisas pequenas: de uma refeição, de estar grato por poder caminhar ou por poder fazer uma coisa nova todos os dias. Consideramos que a rotina é paralisante, desmotivante e… conduz à depressão.
A rotina na terceira idade é, muitas vezes, inevitável?
MS: Por um lado, é bom as pessoas terem horas para se levantarem, para poderem ir aos centros de dia, mas, por outro…
HM: A rotina, no sentido de fazer sempre a mesma coisa por não haver alternativas, é algo mau. Temos consciência de que, com o nosso livro, estamos a tentar mudar isto de uma forma modesta.
Como terapeutas ocupacionais e psicólogas que trabalham diretamente com pessoas na terceira idade, consideram que deveria existir um esforço maior da sociedade para integrar mais esta população?
HM: Uma das coisas em que acreditamos muito, que combatemos, é a questão do idadismo. Acho que na nossa sociedade ainda há muito a ideia de “É velho, não consegue, já não adianta”. A pessoa interioriza isto e acredita mesmo que já não é capaz, que já não vai ser feliz, que ser velho é para estar sossegado.
MS: É exatamente isso que queremos combater. As pessoas têm a capacidade de aprender, vamos sempre aprender alguma coisa, até ao fim da nossa vida. Pelo menos quero acreditar que é assim que se vai passar comigo [risos].
A pandemia deixou a nu alguns preconceitos que existem na sociedade face à terceira idade?
MS: Sem dúvida, sem dúvida.
HM: É como uma ferida que estava a sarar em falso e agora ficou aberta. Sinto mesmo isso, que… que não vale a pena investir neste aspeto, no sentido de “Deixá-los estar sossegados, já não vale a pena… já viveram”.
MS: Há muitas coisas na pandemia que não correram bem, os idosos que foram deixados para trás, e temos de acreditar que podemos mudar [isso].
Perderam muitos idosos com quem trabalhavam para a pandemia?
MS: Nem faz ideia da quantidade de pessoas que conhecemos que morreram. E não morreram só de Covid-19, muitas morreram de outras doenças. Já estamos a sentir a falta delas. Essas pessoas, que às vezes são números na comunicação social, para nós são caras, pessoas que conhecíamos, com quem trabalhámos… Pessoas de quem gostamos mesmo.