“Valeu a pena”. Quatro anos depois de ter chegado a acordo com o PS de Fernando Medina em Lisboa, entrando assim na sua primeira grande experiência de governação autárquica, o Bloco de Esquerda conclui que os esforços para chegar a entendimento com o PS na capital compensaram e quer agora ainda “mais força” para determinar a governação da cidade, deixando aberta a porta a novos entendimentos no Executivo municipal. Na apresentação da candidatura de Beatriz Gomes Dias à Câmara, que decorreu este sábado à tarde, ficou feito o balanço do mandato e estabelecidos os desafios para o próximo — com o reconhecimento do que ficou fazer, por exemplo na Habitação, mas silêncio absoluto quanto ao elefante fora da sala, o antigo vereador Ricardo Robles.
Nas intervenções que marcaram a apresentação — Isabel Pires, candidata à Assembleia Municipal; Manuel Grilo, o vereador que substituiu Robles na Câmara; Catarina Martins, coordenadora do BE; e Beatriz Gomes Dias, a candidata — ficou desde logo clara a importância desta experiência para o Bloco, um partido com uma implantação autárquica residual, e o que Lisboa pode significar para os projetos do BE a nível nacional.
“Se há algo que a experiência dos últimos quatro anos mostrou é que não teria sido possível o acordo que conseguimos se o Bloco não tivesse tido os votos que teve. O Bloco mostrou que tem programa e que tem capacidade para governar”, garantiu Beatriz Gomes Dias, adiantando desde logo que o BE “não fecha a porta” a novos entendimentos — sem passar “cheques em branco”. Antes, já Manuel Grilo se tinha referido à “primeira experiência no executivo de uma grande câmara municipal para assegurar: “Mostrámos que sabemos governar, que fazemos a diferença na vida das pessoas quando temos poder para mudar a política”. Por entre muitas garantias de “independência”, de “autonomia” e de oposição quando é preciso, a conclusão ficou: o BE gostou da experiência de participar na governação e se tiver “mais força” — isto é, se eleger mais vereadores — promete fazer mais.
Não é a única implicação nacional a retirar da experiência lisboeta: os oradores pegaram em exemplos de políticas que arrancaram em Lisboa e acabaram por ter implantação nacional — da gratuitidade dos manuais escolares à redução dos preços dos passes sociais, com a esperança de que o mesmo aconteça na tarifa social da água — para provar que a influência do BE já transbordou as fronteiras da capital.
Habitação é objetivo por cumprir
Mesmo assim, não foi suficiente para contrariar o PS em dossiês-chave: se há quatro anos uma das grandes prioridades do BE em Lisboa era a Habitação, nomeadamente a aposta em habitação acessível, o objetivo mantém-se e o partido sobe o tom das críticas ao PS por insistir nas “parcerias público-privadas” para o setor em Lisboa (há semanas, o candidato do PCP, João Ferreira, aproveitava a sua própria apresentação de candidatura para criticar o que a maioria de esquerda — sem PCP — não conseguiu fazer nesta área). “Sabemos bem como o problema da habitação não está resolvido em Lisboa”, assumiu Catarina Martins, garantindo não ter “hesitações” em reconhecer o que correu mal em Lisboa.
Por isso mesmo, todos assumiram ser preciso fazer mais para garantir habitação acessível (com contrapartidas como 25% de renda acessível para novas construções), transportes ainda mais baratos (começando pela gratuitidade para pessoas desempregadas), combater a crise climática e garantir o direito à fruição cultural, assim como dar respostas à crise social fomentada pela pandemia.
BE quer questionar memória histórica (e não fala da memória de Robles)
Além das linhas já mencionadas, Gomes Dias, que começou o discurso visivelmente emocionada depois de ter sido apresentada por Catarina Martins como a pessoa que a coordenadora do BE conhecia “há mais tempo” naquela sala e como uma “mulher negra, ativista antirracista, que acredita numa cidade para todos e para todas”, fez questão de salientar a importância dessa “escolha”: “Sou ainda, e sobretudo, uma mulher negra. A realidade é que o racismo e o sexismo continuam a determinar o local que coletivamente ocupamos”.
Às restantes linhas de intervenção juntou o objetivo de construir uma cidade sem desigualdades e também uma Lisboa que “questione a sua memória histórica”: “A memória oficial projetada e preservada no espaço público oculta outras memórias da cidade e cristaliza uma história única. Há que promover um debate crítico e atualizado sobre as políticas de memória da cidade, que promova uma discussão aberta sobre as narrativas, a iconografia, os monumentos e os equipamentos culturais que contam a história da cidade e do país”.
Ficavam assim estabelecidas as metas para o futuro, deixando um problema do passado por endereçar: a saída do vereador eleito pelo BE em 2017, Ricardo Robles, pouco menos de um ano depois das eleições, por estar envolvido num caso de especulação imobiliária, foi um caso marcante para o BE a nível local e nacional. Ainda assim, todas as referências de Catarina Martins foram para o trabalho feito por “Manuel Grilo e o seu gabinete” e para “o vereador do BE em Lisboa”. Grilo reconheceu o “orgulho pelos momentos difíceis que soubemos ultrapassar”, Gomes Dias agradeceu o trabalho de “Manuel Grilo e a sua equipa de vereação”, mas ninguém quis recordar o maior fantasma do mandato anterior. Para a frente, o objetivo está desenhado: além de deixar essa memória para trás, eleger mais vereadores e, se houver condições para isso, negociar novo acordo na Câmara de Lisboa.