Nuno Baltazar deparou-se com um obstáculo incontornável: a impossibilidade de reunir imprensa e convidados em torno do longo corredor onde tem por hábito projetar muito mais do que o guarda-roupa de uma próxima estação. As histórias, que acaba depois por revestir de textura e cor, não perderam o público (este seguiu atentamente a coreografia idealizada pelo criador por via digital), mas desfilam agora com um pouco menos de emoção.

“É quase como se estivesse a ouvir uma música aos bocados”, desabafa o criador, ao telefone com o Observador. “Ainda que a reação imediata seja dar a volta a todas as limitações — sobretudo para nós criativos –, a verdade é que o ânimo é difícil de controlar. Sinto-me contente por ter conseguido fazer este desfile e por me ter desafiado a comunicar numa nova linguagem, mas não é uma coisa que me encha as medidas”, resume.

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O aparato técnico, a redução do calor humano e o processo maquinal de recuar e repetir fazem parte da nova rotina. Coube à ModaLisboa, nesta edição número 56, introduzir os designers a esta forma diferente de apresentar uma coleção. Mais solitário (Nuno enumera, por exemplo, as várias caras e momentos de que foi sentindo falta ao longo das gravações), mas não desprovido de emoção na totalidade, o formato é uma clara limitação de um espetáculo multissensorial, por vezes emotivo. Baltazar tentou, ainda assim, dar a volta ao texto.

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“Scritp. Guião para (Título Provisório)” é o título da coleção e, simultaneamente, do momento performático que idealizou para a apresentação, transmitida esta sexta-feira à noite. Manequins e três convidadas especiais — Soraia Chaves, Sónia Balacó e Astrid Werdnig — vestiram a pele de atrizes num casting à média luz. De costas e focado de relance, o designer sentou-se na cadeira de realizador.

“Dificilmente desenvolvo uma coleção sem saber como a vou apresentar. Sabia que o formato ia ser este e fiz tudo a pensar nele. Elas simulam aquele momento de tensão e de preparação que é o casting — depois de pensar nestas personagens, comecei a desenvolver-lhes o guarda-roupa”. Ressalta a intenção de adicionar teatralidade ao momento, sobretudo através de um styling propositadamente incoerente e de camadas inusitadamente conjugadas, como acontece com o casaco de corte masculino que cobre um quase vestido de noiva. A mistura de cores, texturas e materiais sugere essa mesma indefinição de papéis.

A apresentação de Nuno Baltazar © Ugo Camera

“Para mim, era muito importante que esta coleção não fosse poupada. Não no sentido financeiro, mas não queria fazê-la a pensar no conforto de quem está em casa”, assume. O impulso de negar o conformismo falou mais alto e sem esquecer as reais necessidades das suas clientes, Baltazar apontou a mira a uma realidade que não a atual e contou uma história que só terá lugar no devir.

“Estou um bocado cansado de termos de nos cingir às circunstância que estamos a viver. Isso já é inevitável quando pensamos em apresentar neste formato, mas não tem de o ser quando desenvolvemos a coleção. Quis contar uma história que permita às pessoas transportarem-se para outro tempo”, esclarece. Um tempo que, para o designer, pode muito bem estar ao virar da esquina. E se a história nos ensinou a esperar uma explosão de vida depois de um momento de crise, Nuno já está pronto para os novos loucos anos 20. “Por muito revelador que este período esteja a ser ao nível da interioridade, acho que as pessoas vão querer viver o mundano da forma mais intensa possível”.

Hibu, uma comunidade de arte, música e moda

O projeto de Marta Gonçalves foi também ele deixado para a reta final deste segundo dia de ModaLisboa. Desfilar depois de jantar, ainda que virtualmente, é uma prova de solidez, embora a ligeireza e a descontração que a jovem designer coloca tanto na roupa como nas palavras nos sugiram que talvez seja esse o segredo para ver uma marca crescer em plena pandemia.

“Este contexto só trouxe coisas positivas ao negócio”, afirma sem hesitar. As vendas correm bem, a marca atrai cada vez mais clientes internacionais (e não só) e a pop-up store de Natal foi um sucesso, ao ponto de lhe ter semeado umas quantas ideias na cabeça, sobretudo de novas formas de interagir com a cidade e com as suas pessoas. “Todas as experiências que temos fora da ModaLisboa e o facto de conseguirmos fazer eventos físicos são muito importantes para conseguirmos sentir esta comunidade que se criou à nossa volta”.

A coleção da Hibu © Hugo Camera

Comunidade é a palavra-chave para decifrar a coleção do próximo inverno. Um grupo de pessoas, maioritariamente provenientes de circuitos artísticos, que podem hoje ser consideradas aficionadas da marca portuguesa — foram atraídas pela sua multidisciplinaridade, pelas afinidades com a música e pelo esbater dos códigos de vestuário binários. “Quis mesmo transmitir esta comunidade Hibu. Sinto que já estamos numa fase em que as pessoas olham para as peças e se identificam. E quando atingimos essa sensação, as coleções já falam por si”. Esta diria que há vida a acontecer e denunciaria um apetite insaciável por misturar de cores e padrões. Tudo a pensar na comunidade.

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No mesmo dia em que Hibu e Nuno Baltazar apresentaram as suas coleções, a passerelle virtual foi ainda pisada por Carolina Machado. A jovem criadora da plataforma Lab pensou a estação a fria à luz da atual incerteza que pauta a agenda. Entre os cenários da vida em casa e do regresso à normalidade pré-pandémica, propôs um guarda-roupa versátil e minimal, capaz de cumprir com as exigências de uma mulher a duas velocidades.

A coleção de Carolina Machado © Ugo Camera

A dupla Awaytomars marcou presença no calendário através de um curto vídeo, mas sem apresentar coleção. Na plataforma Workstation, foi a vez de Filipe Augusto, que partiu da ideia de um mercado tradicional, barulhento e repleto de cores e texturas, para vestir um homem simultaneamente clássico e disruptivo.

A 56ª edição da ModaLisboa continua no sábado, dia em que são esperadas as apresentações das marcas Buzina e Duarte e da designer Constança Entrudo, todas elas inseridas plataforma Lab, mas também de Valentim Quaresma e Carlos Gil. Até lá, veja as imagens dos principais desfiles deste segundo dia, na fotogaleria.