Morreu esta terça-feira em Lisboa o artista visual Julião Sarmento, primeiro criador português a obter reconhecimento internacional generalizado sem ter de abandonar o país e um pioneiro da experimentação que a arte portuguesa fez na segunda metade do século XX. Tinha 72 anos, estava doente com cancro e morreu pelas 7h00 na Fundação Champalimaud. A notícia foi confirmada pela Galeria Cristina Guerra, que o representava.

Autor de uma obra multifacetada que abrangeu meios tão diversos como pintura, vídeo, som, desenho, escultura e instalação, Julião Sarmento foi influenciado pela literatura e pelo cinema e explorou artisticamente os temas da sensualidade, do feminino, do voyeurismo e da transgressão. Na década de 70 experimentou novos processos de criação sem recurso aos meios tradicionais, ou seja, a escultura e a pintura, partindo à descoberta da fotografia, do filme, do texto, da palavra e do som.

Mais do que o erotismo, que tantas vezes se associa à obra, trabalhou o tema do desejo, segundo o crítico e historiador Pedro Lapa. “Um artista do desejo, que apesar de ter escolhido outros meios, que não tanto os tradicionais, também foi um grande pintor, um dos maiores pintores do século XX português”, disse.

https://www.facebook.com/CristinaGuerraContemporaryArt/posts/4499219463425083

Nos últimos anos, Julião Sarmento esteve envolvido na recuperação em Lisboa do Pavilhão Azul, um espaço municipal perto do Centro Cultural de Belém destinado a acolher a coleção de arte do próprio artista. O projeto do Pavilhão Azul foi entregue ao arquiteto Carrilho da Graça e conheceu diversos atrasos, sendo incerto se e quando irá abrir portas. “Emprestei a coleção à cidade de Lisboa, porque acho que as coleções devem ser partilhadas. Se isso acontecer, fico muito contente. Se isso não acontecer, a minha vida não vai mudar. Comecei a colecionar há 50 anos. Continuo a comprar e a trocar obras”, comentou Julião Sarmento ao Observador numa longa entrevista publicada há pouco mais de seis meses.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Julião Sarmento: “Só olho para a frente. Tudo para diante, sempre”

Nascido em 1948, em Lisboa, Julião Sarmento vivia e trabalhava no Estoril. Está representado em importantes coleções públicas e privadas. Além de ter exibido as suas obras por todo mundo nas últimas cinco décadas, o artista representou Portugal na 46.ª Bienal de Arte de Veneza, em 1997, e também nas feiras de arte contemporânea Documenta 7, em 1982, na Documenta 8, em 1987, e na Bienal de São Paulo, em 2002.

“Marca um antes e um depois na história da arte portuguesa”, comentou ao Observador Pedro Lapa. “Julião Sarmento é o princípio de todo o entendimento da arte que temos hoje. Há uma diferença significativa na obra do Julião relativamente a outros artistas da mesma geração ou anteriores. A partir da década de 70, ele traz um novo entendimento do objeto artístico e de como pode ser trabalhado. Nesse sentido é obviamente o pai de toda arte contemporânea mais recente, uma figura absolutamente tutelar no contexto português”, acrescentou.

Pedro Lapa, ex-diretor artístico do Museu Coleção Berardo (2011-17) e do Museu do Chiado (1998-2009), referiu ainda que Julião Sarmento criou ao longo das décadas “trabalhos de uma riqueza profunda” que lhe permitiram “obter um reconhecimento internacional generalizado”.

“É o primeiro grande artista português a obter esse reconhecimento, sem ter de abandonar o país. Amadeo de Souza-Cardoso não chegou a obtê-lo, porque morreu muito cedo. Vieira da Silva teve de deixar de ser portuguesa. Paula Rego não deixou de ser portuguesa, mas teve de viver em Londres. Julião Sarmento é o primeiro grande artista com reconhecimento internacional que continuou a produzir a partir do contexto português”, explicou o crítico e historiador. “Naturalmente, há diferenças de contexto histórico e cultural, quer do país quer do mundo, nos períodos em que cada um destes exemplos se situa, no entanto, o Julião quis sempre realizar uma obra a partir de Portugal e conseguiu ao mesmo tempo a internacionalização. Conseguiu dar um passo para vencer esse trauma da arte portuguesa, que é o do seu isolamento do resto do mundo.”

Pedro Lapa conheceu Julião Sarmento no início da década de 90 e ficou ligado ao artista por uma “amizade infinita”. Recordou-o nesta terça-feira como “uma pessoa extremamente disponível”, “aberto a todos e sempre disponível para críticos, curadores e artistas”. Trabalharam juntos em diferentes ocasiões, incluindo em 2002, no Museu do Chiado, em Lisboa, quando Pedro Lapa organizou uma retrospetiva de Julião Sarmento relativa à década de 70.

“Enquanto outros miúdos ficavam a jogar à bola…”

Nasceu em Lisboa, em 1948, e desde pequeno queria ser artista. Numa entrevista dada à revista Contemporânea, em 2018, questionado sobre “se não fosse artista, era o quê?”, respondia assim: “Artista”. Muitos anos antes, em 1998, já detalhara a longevidade do seu interesse nas artes em entrevista à RTP: “Acho que sempre quis ser artista. Desde muito pequenino que tinha bastante a certeza do que podia fazer. Não sabia bem o que era ser artista (…) mas sabia que tinha de fazer um determinado tipo de coisas”.

Desde miúdo que me dedicava a fazer isso de corpo e alma. Enquanto outros miúdos ficavam a jogar à bola, ou coisa assim — eu também jogava à bola — dedicava parte do meu tempo a fazer coisas que eram um bocado incompreensíveis para outros amigos meus, como estar a fazer desenhos em casa ou coisa do género”, recordava em 1998.

Muitos anos depois, em 2015, Julião Sarmento daria mais detalhes sobre a sua inclinação prematura para as artes em entrevista ao jornal I: “Era muito solitário, tinha uma família muito pequena e fechada, os meus pais não tinham amigos e eu era filho único, neto único, sobrinho único… Era um solitário, malgré moi. Para mim, ser artista era uma fuga ao país cinzento”. E ao Público apontaria algumas referências iniciais: “Desde muito novinho que queria ser artista. Gostava de ir aos museus, gostava de ver coisas. (…) A geração mais nova esquece-se, porque não viveu este período, que os artistas de quem ouvíamos falar eram o Salvador Dali, o Picasso, o Matisse. Não tínhamos outros referentes. Quando comecei, queria ser como o Matisse”.

O tal “país cinzento”, salazarista, em que começou por crescer e onde começou por formar o gosto artístico marcou o início do seu percurso. “Era difícil. Não se podia falar abertamente, ter acesso às coisas, aos filmes, por exemplo. Era tudo censurado e empobrecedor. Havia algumas pessoas com quem falar, mas era muito difícil. No meu caso, era, por exemplo, o Calhau [Fernando]. Éramos como irmãos”, explicava em 2018 à revista Contemporânea.

“Um dos mais talentosos, produtivos e generosos artistas portugueses das últimas décadas”. As reações à morte de Julião Sarmento

O cinema italiano, e em especial o cinema de Michelangelo Antonioni, marcou-o desde a adolescência também pela ausência de juízos morais na construção de personagens — a ele que era um cinéfilo já em miúdo, faltando a aulas para ir ver filmes, sendo membro de cineclubes e vendo filmes em sessões consecutivas, umas a seguir às outras. E Julião Sarmento viria também a trabalhar esse suporte, mas o desenho foi o meio no qual começou a desenvolver a sua linguagem artística, que beberia de diferentes fontes e que o artista expressaria, durante as décadas seguintes, em diferentes formatos.

Nessa grande entrevista à RTP em 1998, Julião Sarmento explicava que expressar-se artisticamente foi aliás desde cedo “como uma necessidade de respirar”, algo que lhe era “absolutamente vital”, por mais que dizê-lo fosse um” grande clichê”.

A criação como “uma espécie de tradução imediata das reações que tinha”

Símbolo maior de uma atitude de recusa em compartimentar áreas de expressão artística — como que prova prática de que o artista, para ser inteiro, precisava de cruzar diferentes linguagens e alimentar-se delas para construir o seu universo estético interdisciplinar —, Julião Sarmento refletia-se desde cedo a si, aos seus variados interesses e às suas emoções nos desenhos que foi aprimorando.

A literatura foi uma influência grande desde cedo, o já referido cinema outra mas, como chegou a lembrar, eram os “estados de alma” e as reações — suas e de outros — à arte e ao quotidiano que mais lhe interessavam. “O simples facto de observar as pessoas, observar as coisas e tudo o que se passava à minha volta… acima de tudo o que me interessava muito eram os estados de alma das coisas. Sempre muito mais do que ser influenciado por um livro [ou um filme], era influenciado pela maneira como ficava ao ler esse livro ou depois de ler esse livro [ou ver um filme]. Era uma espécie de tradução imediata das reações que tinha” ao que via, lia e observava, ao seu olhar sobre as coisas, chegaria a dizer.

Já certo de que o seu percurso de vida se faria pela arte, frequentou, entre 1967 e 1974, a Escola Superior de Belas Artes em Lisboa, onde estudou arquitetura e pintura. Isto já depois de um breve período a viver em Londres, entre 1964 e 1965.

Na década de 70, aquela em que simultaneamente frequenta e abandona a Escola Superior de Belas Artes em Lisboa, dá-se o início da produção artística mais regular de Julião Sarmento. Uma produção mais experimental e figurativa, muito orientada para um trabalho em meios como a fotografia e o filme.

É depois do 25 de abril que começa a expor mais regularmente, como atesta, aliás, o “CV selecionado” (mas muito completo) que disponibilizou no seu site oficial. A primeira exposição individual acontece na Sociedade Nacional de Belas-Artes e em 1977 Julião Sarmento é um dos artistas representados na ambiciosa exposição “Tendências Polémicas da Arte Portuguesa Contemporânea”, que esteve patente na Galeria Nacional de Arte Moderna, que foi organizada por Ernesto de Sousa e que teve também trabalhos expostos de Álvaro Lapa, Ana Hatherly, António Sena, E. M. de Melo e Castro, Fernando Calhau e Helena Almeida, entre muitos outros artistas nacionais (além de Julião Sarmento e do próprio Ernesto de Sousa).

A década seguinte, os anos 1980, marca a sua afirmação definitiva no panorama artístico — português e internacional — e uma certa rutura com o trabalho anterior. Sobre as mudanças face aos anos 70, chegou a dizer Julião Sarmento em entrevista ao Público: “Mais do que tudo, o que me entediou — a mim e a outros, não fui o único artista nessa aventura — foi o facto de as obras não me surpreenderem. Aconteceu no final dos anos 70. Antes de as fazer, já sabia o que ia fazer e como ia resultar”. Nos anos 1980 dá-se o seu regresso à pintura. Julião Sarmento explicou-o assim, na entrevista dada à revista Contemporânea:

Na altura não se podia pintar, porque a pintura estava morta. Sendo a arte, por definição, um exercício de rebeldia, era o momento de voltar a pintar. Por outro lado, o conceptualismo ficou gasto. Tornou-se demasiado pensado, aborrecido, tinha perdido a espontaneidade, até a graça. Deixou de haver surpresa. E sentíamos que tínhamos de nos espantar, de nos surpreender, de ter o gesto que o Velasquez tinha quando fazia a pata do cavalo assim, e depois apagava e fazia de outra maneira. E isto estava a ser impossível.”

Nesta década em que ganha projeção internacional trabalhando a partir de Portugal, Julião Sarmento produz obras como a colagem “Mehr Licht” (1985) e representa Portugal por duas vezes na grande feira de arte contemporânea e arte moderna Documenta, organizada a cada cinco anos na cidade de Kassel, na Alemanha. Ou seja: nas duas “Documentas” dos anos 1980, em 1982 e 1987, o português Julião Sarmento surge como um dos artistas com trabalhos expostos. Antes disso, porém, em 1980 e 1981, já tivera obras expostas respetivamente na Bienal de Veneza e na Bienal de Paris.

Mehr Licht, de Julião Sarmento

Ao longo da década de 1980 o trabalho de Julião Sarmento é ainda apresentado em exposições individuais e coletivas em museus e galerias de arte de numerosos países, da Alemanha à Suíça, dos Países Baixos a Itália, de Espanha, à Islândia, da Grécia aos EUA e ao Reino Unido. E a sua produção inclui colagens que misturam elementos que vão de pinturas suas a imagens de jornais.

A consolidação nos anos 90 e a portugalidade: “Nunca desejei sair do meu país. Sou português”

A projeção internacional sem sair de Portugal, destacada ao Observador por Pedro Lapa (“É o primeiro grande artista português a obter esse reconhecimento sem ter de abandonar o país”), é um dos seus grandes feitos e um dos traços distintivos que o demarcam de muitos dos seus contemporâneos. À Revista Contemporânea, Julião Sarmento chegou a apontar: “Nunca desejei sair do meu país. Sou português e sempre procurei afirmar-me, ser o melhor artista que conseguisse, daqui para fora, para o mundo. A maioria dos artistas que saiu vinha expor a Portugal e isso não me fazia sentido. Não era a minha estratégia enquanto artista, a minha maneira de estar”.

No final dos anos 80 e em 1990, Julião Sarmento continua o seu trabalho expositivo e continua a apurar a sua pintura, tornando-a mais contida e criando séries de obras como Emma (1990/1991) e Pinturas Brancas. Em 1994 foi agraciado com o grau de Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada e três anos depois, em 1997, representa Portugal na Bienal de Veneza — um marco absoluto no seu percurso artístico. Tem ainda exposições individuais marcantes como (em 1997) Werke 1981 – 1996, no museu de arte moderna e contemporânea Haus der Kunst, em Munique, e (em 1999) Fundamental Accuracy no Hirshhorn Museum and Sculpture Garden, em Washington D.C, entre muitas outras. Expõe ainda regularmente em espaços como a Sean Kelly Gallery, em Nova Iorque, e apresenta Flashback no Centro de Arte Moderna Reina Sofia, entre muitas outras mostras internacionais.

As exposições em Portugal continuaram a ser regulares, nos anos 90 — por exemplo na Fundação Calouste Gulbenkian, em Serralves, no Palácio Nacional de Sintra e na ARCO – Galeria Municipal de Arte, em Faro — e daí em diante. Em 2001 volta a expor na Bienal de Veneza e no ano seguinte, em 2002, na Bienal de São Paulo (cidade que acolheu várias exposições de Julião Sarmento nas últimas três décadas). Isto numa altura em que já começara a dar aulas, nos anos 90, no Japão e na Alemanha, mais concretamente no Centro para as Artes Contemporâneas de Kitakyushu e na Akademie der Bildenden Künste, em Munique.

Já em 2011 teve um artist room dedicado ao seu trabalho e com obras suas na Tate Modern, em Londres, e em 2012 e 2013 o Museu de Serralves organizou Noites Brancas, uma retrospetiva antológica completa do seu trabalho. Ao longo da última década, continuou na expor com enorme regularidade, como o CV atesta. Há dez anos, Julião Sarmento resumia assim as suas “obsessões” artísticas de vida em entrevista ao Público: “Ando sempre à volta das mesmas coisas. Três obsessões fundamentais: arte, cinema e literatura”. E as mulheres e o sexo, não? “Essa é a mais importante de todas!”.