Ainda que haja pontos onde alguns partidos concordam quanto ao teletrabalho, no debate desta quarta-feira, em plenário, ficaram mais evidentes as diferenças de posições: no pagamento das despesas, no papel da negociação coletiva ou no direito a desligar. Antevendo que alguns projetos de lei pudessem ser chumbados, as forças políticas preferiram tentar outra via e encontrar na especialidade convergências: por isso, as propostas para regular o teletrabalho baixaram à comissão sem votação.

A intenção de continuar o diálogo na especialidade e encontrar posições comuns foi sendo deixada por alguns partidos, ao longo do debate em plenário sobre os vários projetos de lei. Pelo PS, Tiago Barbosa Ribeiro acredita que o debate na especialidade permitirá “construir e não dividir, partindo do que são as naturais opções de cada partido“. É nessa sede que, “no respeito pela integridade da nossa proposta e dos princípios que a orientam, estaremos naturalmente disponíveis para o diálogo com todos os partidos ao encontro das melhores soluções”.

O bloquista Jorge Costa também mostrou intenção de continuar esse debate. “Há muito trabalho pela frente. Queremos fazer esse trabalho de boa-fé e temos expetativa de que o Parlamento possa fazer face a esse objetivo. Por isso, proporcionamos a baixa à especialidade sem a votação do projeto do Bloco de Esquerda e dos outros partidos também, para que todos os partidos possam ter os seus projetos devidamente presentes no trabalho da especialidade”.

E, da parte do PSD, a deputada Emília Cerqueira salientou que a descida à especialidade “vai permitir fazer as melhores alterações” para que, “no fim do dia”, se possa ir “ao encontro das necessidades do mercado de trabalho nacional”.

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Proposta do PS sobre direito a desligar é “extremamente perigosa”, acusa Bloco

Mas as divergências fizeram notar-se em grande parte do debate, entre os partidos à esquerda, o PS e o PSD (estes dois últimos também quiseram mostrar que não estão de acordo em muitas matérias). A primeira investida veio do Bloco de Esquerda, que acusou a proposta do PS para legislar o “direito a desligar” de ser “extremamente perigosa”. Segundo o deputado José Soeiro, o que o projeto de lei socialista faz é criar “um novo conceito separado do tempo de trabalho que é o tempo de contacto”, o qual pode, no limite, ser um “tempo de disponibilidade não remunerada para ser contactado“. “Aí, estamos numa armadilha arriscadíssima, na qual não devemos embarcar”, argumenta.

José Soeiro defendeu que a proposta socialista prevê um direito — a desligar — que já existe na lei, “não precisa de ser consagrado como coisa nova, mas deve ser exercido“. Por isso, considera, a lei deve frisar a obrigação da entidade empregadora à “não conexão”, ou seja, o “dever do empregador de se abster de contactar o trabalhador”.

“A proposta do PS é extremamente perigosa porque, à boleia de um acordo sobre o direito a desligar, cria um novo conceito separado do tempo de trabalho que é o tempo de contacto. Como assim? O tempo em que o trabalhador pode ser contactado? É o seu tempo de trabalho. A menos que se queira criar paralelamente ao tempo de trabalho um tempo de disponibilidade não remunerada para ser contactado, que é diferente do tempo de trabalho. E, aí, estamos numa armadilha arriscadíssima na qual não devemos embarcar”, sublinhou.

O PS propõe um artigo na lei para o “direito de desligar”, definindo que o  acordo de implementação do teletrabalho deve fixar o horário dentro do qual o teletrabalhador “tem o direito de desligar todos os sistemas de comunicação de serviço com o empregador, ou de não atender solicitações de contacto por parte deste, não podendo daí resultar qualquer desvantagem ou sanção”.

Despesas fixas ou negociadas e até onde ir no direito a desligar? Partidos têm soluções diferentes para os mesmos problemas do teletrabalho

PS “não acha que, só por ir para casa em teletrabalho, a empresa tenha de assumir todas e quaisquer despesas”

José Soeiro traçou uma “clivagem essencial” entre os projetos apresentados: de um lado, os que dizem que a lei, por exemplo, “deve ser imperativa sobre a obrigação de pagar equipamentos ou despesas” — onde Soeiro diz que se insere a proposta do Bloco — e, do outro lado, as propostas do PS e do PSD que, argumenta, não consagram “obrigações” mas “definem possibilidades”, ao permitir que os princípios definidos na lei (como o pagamento de despesas) estejam dependentes de acordo ou convenções coletivas. “Discordamos totalmente desta opção. A lei tem que definir direitos e não hipóteses“, vincou.

Na resposta, a deputada do PSD Carla Barros defendeu que a lei deve “deixar espaço” para que “entendimentos possam emergir entre o diálogo” dos patrões e dos trabalhadores. A esse respeito, Soeiro voltou a dizer que a contratação coletiva “completa a lei mas não a substitui”. “É útil para clarificar especificidades”, mas “o direito de uma compensação não pode ser remetido para um acordo individual”, argumenta.

Mais tarde, foi a vez do PS, pela voz de Ana Catarina Mendes, atribuir à negociação coletiva um “amplo espaço” para que “defina setorialmente as condições específicas e precisas do teletrabalho”. Tal como o PSD, os socialistas também remetem para a contratação coletiva o pagamento das despesas em teletrabalho. “Esta bancada não acha que, só por ir para casa em teletrabalho, a empresa tenha de assumir todas e quaisquer despesas. Isso tem de ser matéria de acordo e tem que ser comprovado qual o acrescimento de despesa“, respondeu Ana Catarina Mendes aos partidos de esquerda.

Na intervenção inicial, a líder parlamentar socialista tinha dito que, “para o grupo parlamentar do PS, o teletrabalho só avança por mútuo acordo de ambas as partes”, acrescentando que o partido “respeita e respeitará sempre a concertação social” e a “função legislativa da Assembleia da República”. Ana Catarina Mendes diz que o partido ouviu “sugestões dos parceiros sociais” e seguiu “recomendações do Governo”, “não ignorando a discussão que está a ser feita em sede do concertação social”, com o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho. A deputada quis ainda deixar claro que a proposta socialista define que “quem recebe subsídio de refeição continua a recebê-lo”.

Ainda assim, há diferenças a separar o PS do PSD. O social-democrata Pedro Roque quis frisar essas divergências, ao acusar o PS de seguir uma máxima semelhante à do ex-líder da República Popular da China Deng Xiaoping — a “de um partido dois sistemas”. Por um lado, diz o deputado, está o grupo parlamentar do PS, que apresenta uma “legislação extravagante”. Por outro lado, o “PS governante” que “encomenda o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho”, o apresenta e inicia um debate com os parceiros sociais, sem apresentar alterações legislativas.

Governo insiste em atirar para a negociação coletiva despesas com o teletrabalho

Coube a Miguel Cabrita, secretário de Estado adjunto, do Trabalho e da Formação Profissional, representar o Governo, que insiste em atirar para a negociação coletiva temas como as despesas em teletrabalho. Em resposta ao deputado José Soeiro, o responsável disse que “há matérias em que [a negociação coletiva] pode e deve ter autonomia”. “Ter uma negociação coletiva que não tem autonomia em relação à lei não é negociação coletiva, é apenas pegar em pequenos aspetos da lei e clarificá-la”.

Miguel Cabrita disse ainda que apesar de muitas das propostas apresentadas não coincidirem com as do Governo há “margem para encontrar as soluções e equilíbrios que respondam a vários dos desafios que se colocam”.

O secretário de Estado respondeu ainda ao facto de a DGERT ter esclarecido que o subsídio de refeição deve ser pago aos teletrabalhadores, tal como lembrado por José Soeiro. “É bastante diferente que haja um esclarecimento de serviços públicos, como estar plasmado na lei“, apontou, depois de o PS ter dito que quer clarificar na lei este ponto.

Miguel Cabrita foi ainda questionado pelo PSD sobre se o Governo, após a reflexão na concertação social, vai apresentar alguma proposta de alteração à lei. Mas apenas respondeu que a AR tem autonomia para apresentar iniciativas.

PCP: “A casa dos trabalhadores não é uma estação da empresa”

O PCP defende que as empresas devem assegurar o equivalente a, pelo menos, 2,5% do IAS (atualmente, esse valor ficaria em 10,97 euros) por dia ao trabalhador, o que daria cerca de 220 euros por mês, para compensar o “acréscimo de despesas realizadas ou a realizar”, nomeadamente com os “consumos de água, eletricidade, internet e telefone”. É que, como defendeu a deputada comunista Diana Ferreira, “a casa dos trabalhadores não é uma estação da empresa. É um espaço privado seu e da sua família”. A lei, para o PCP, deve consagrar um valor fixo de compensação pelas despesas, “rejeitando que estas responsabilidades sejam transferidas para os trabalhadores”.

Os trabalhadores à distância devem, considerou ainda Diana Ferreira, “ter os mesmos direitos e segurança no trabalho”. “Uma relação de trabalho não é uma relação entre iguais”, diz, realçando que “o trabalhador é a parte mais frágil, que tem de ser protegido”. Além disso, o empregado deve poder “rejeitar a proposta de teletrabalho” quando sente que não há condições para o fazer.

Já Inês Sousa Real, do PAN, frisou o direito à “desconexão”. “Não faz sentido que não seja já uma realidade”, apontou. “Esta discussão é o inicio de um caminho que todos queremos que seja capaz de garantir equilíbrio na relação laboral”, disse, acrescentando que o partido está disponível para “reforçar direitos” e discutir as propostas na especialidade.

A deputada não inscrita Cristina Rodrigues também vincou a necessidade de “garantir que o trabalhador tem um acréscimo remuneratório”, como compensação” e mostrou abertura para “aprofundar o debate na especialidade”.

CDS quer lei a prever “explicitamente” direito a desligar

Pedro Morais Soares, do CDS-PP, lembrou que o partido já tinha apresentado, antes da pandemia, propostas para regulamentar o teletrabalho. “Lamentamos que a esquerda tenha necessitado de uma crise pandémica para nos acompanhar”, atirou. Segundo o deputado, os “trabalhadores e empresário exigem dos partidos que olhem para a necessidade de regulamentar o teletrabalho sem a visão sectária que alguma esquerda gosta de imprimir neste debate”.

Os centristas frisam a necessidade de se ouvir a concertação social antes de legislar, referindo que “a maioria projetos [apresentados pelos partidos] não receberam contributos dos representantes dos empregadores e trabalhadores”. “Sempre defendemos que este debate devia ser começado na concertação social”, frisou. Para o CDS, a lei deve estabelecer “explicitamente o direito do trabalhador a desligar”, durante o qual “poderá desconectar-se”.