Rui Pinto tinha uma “ideia romântica” do mundo. Era um “rebelde” com uma “posição extremada”: a de que a Polícia Judiciária (PJ) “não queria saber” da informação que tinha. Nunca acreditou que seria preso. Mas quando no início de 2020, a juíza de instrução decidiu levá-lo a julgamento, por 90 dos 147 pelos quais estava acusado, “as coisas mudaram”. E o diretor da PJ constatou isso.

As “coisas mudaram” porque, “duas ou três” tentativas, Rui Pinto começou finalmente a colaborar “com as pessoas que estiveram no âmbito da sua detenção, dentro da PJ”. Ouvido naquela que é a 41.ª sessão do julgamento do Football Leaks, Luís Neves confirmou em tribunal que o alegado hacker está a colaborar com o Ministério Público, com o Departamento Central de Investigação e Ação Penal e com estruturas da PJ. “Há essa colaboração efetiva” afirmou, acrescentando que Rui Pinto já colaborou “desde que o julgamento começou, várias vezes”.

Rui Pinto tem uma memória muito grande relativamente a muitos factos. Consegue estabelecer conexões. Incomodava-o bastante questões de desigualdade e a questão dos branqueamentos de capitais e fraude fiscal”, explicou.

Aliás, “muitos discos não tinha sido abertos” se não fosse a colaboração do arguido, assume Luís Neves. “Muitos deles jamais conseguiríamos abrir. Com a sua intervenção, esses discos foram abertos”, disse ainda.

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Ainda assim, afirma que não tem conhecimento de nenhuma investigação que tenham tido início em denúncias feitas por Rui Pinto. “Que eu saiba, não”, disse, respondendo às perguntas da Procuradora da República. Luís Neves garantiu ainda que nunca Rui Pinto lhe falou sobre a forma como obteve a informação — até porque, se o fizesse, estaria a autoincriminar-se.

Luís Neves, diretor da Polícia Judiciária, foi arrolado como testemunha de defesa de Rui Pinto

Luís Neves recordou ainda que, à data da detenção, percebeu que “Rui Pinto vivia num sítio modesto e humilde” e que “vivia com dificuldades”: “Tinha dois pares de calças e uns ténis“. Agora, Rui Pinto encontra-se numa morada desconhecida, já que está ao abrigo de um programa de proteção de testemunhas: “Fomos nós que arranjamos a casa, fomos nós que encontramos umas mobílias simples para poder ter o mínimo de vivência nessa casa”.

Sobre a inspetora da PJ que assumiu em tribunal ter assinado um documento relacionado com a investigação a Rui Pinto sem ler, o diretor do órgão de investigação criminal diz-se “absolutamente estupefacto” e garantiu que esta é uma “situação ímpar”. “Há instrumentos disciplinares que estão a apurar essa atitude”, afirmou.

Football Leaks. DIAP já abriu inquérito a inspetora da PJ que assinou (sem ler) relatório sobre investigação a Rui Pinto

As visitas de Ana Gomes à prisão: “Muitas das pessoas que estavam atrás de Rui Pinto queriam proteger os negócios em Angola”

A antiga eurodeputada Ana Gomes também foi ouvida como testemunha e contou em tribunal que visitou Rui Pinto na prisão anexa à PJ entre quatro e cinco vezes — numa delas encontrou o pai — “um homem muito bonito” — e a irmã do alegado hacker. “Rui Pinto era um jovem bastante cândido, culto e fiquei muito impressionada. Fui-lhe levando livros à medida que percebi que ele gostava de ler”, acrescentando que era “um miúdo com uma infância triste, visto que perdeu muito cedo a mãe, e que à medida que se foi apercebendo da porcaria que encontrava, foi ganhando consciência que estava perante uma coisa que era muito mais importante que o futebol”.

Era com a colaboração com a polícia que poderia alcançar o desejo que justiça que alcançava”, disse

Ana Gomes contou que só ficou a saber que Rui Pinto estava por detrás do Football Leaks, pouco antes da extradição. “No princípio de 2019, dois dias antes de ser pública a extradição é que soube que a fonte do Football Leaks era Rui pinto, pelo advogado William Bourdon [advogado francês defendeu os whistleblowers mais famosos]. Entrou no meu gabinete e disse-me que era um jovem português“, contou Ana Gomes, adiantando que o advogado lhe disse que Rui Pinto era “um génio da informática”.

A eurodeputada era a primeira da lista de testemunhas arroladas por Rui Pinto

Depois de anos a levantar suspeitas sobre os negócios de Isabel dos Santos, publicamente mas também em cartas para a Comissão Europeia e autoridades europeias, Ana Gomes viu que “muda tudo” com o Luanda Leaks: “Há um interesse avassalador nacional e europeu que explica que as autoridades portuguesas não possam continuar a fingir que problema não existia”.

Muitas das pessoas que estavam atrás dele [Rui Pinto] eram pessoas que queriam proteger os seus negócios em Angola”, afirmou ainda.

Antoine Deltour, denunciante do Lux Leaks, foi ouvido por videochamada e exaltou o interesse público das informações divulgadas por Rui Pinto. Deltour, que trabalhava na consultora PwC quando revelou segredos comerciais foi julgado por violar segredos profissionais e roubar documentos, mas acabou absolvido. Questionado pela defesa de Rui Pinto sobre o que levou o tribunal a absolvê-lo, Deltour explicou que além de ter admitido os seus crimes, foi reconhecido que havia interesse público.

Ministério Público quer ouvir primeiro interrogatório a Rui Pinto, caso hacker continue em silêncio

Se Rui Pinto continuar em silêncio até ao final do julgamento, o Ministério Público quer que seja ouvido em tribunal o primeiro interrogatório feito a Rui Pinto, quando foi presente à juíza de instrução em março de 2019. A Procuradora da República fez o pedido no final desta sessão e o tribunal aceitou.

Rui Pinto, o principal arguido, responde por 90 crimes — todos relacionados com o facto de ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol, à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra ou o advogado José Miguel Júdice. São, assim 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.

Aníbal Pinto, o seu advogado à data dos alegados crimes, responde pelo crime de tentativa de extorsão porque terá servido de intermediário de Rui Pinto na suposta tentativa de extorsão à Doyen. E é por isso que se sentam os dois, lado a lado, em frente ao coletivo de juízes.

Rui Pinto. O rapaz do “cabelito espetado” que já entrava nos computadores da escola antes de ser o “John” do Football Leaks

O alegado pirata informático esteve em prisão preventiva desde 22 de março de 2019 e foi colocado em prisão domiciliária a 8 de abril deste ano, numa casa disponibilizada pela PJ. Na sequência de um requerimento apresentado pela defesa do arguido, a juiz Margarida Alves, presidente do coletivo de juízes — que está a julgar Rui Pinto e que tem como adjuntos os juízes Ana Paula Conceição e Pedro Lucas — decidiu colocá-lo em liberdade.