Poucos acessórios têm uma presença tão intermitente no nosso dia-a-dia. Sazonal por natureza, o pragmatismo do século XXI (e de uma grande fatia da segunda metade do século anterior) afastou o chapéu do rol de itens que integra obrigatoriamente um guarda-roupa citadino, onde este acessório vai sobrevivendo à conta do arrojo de fashionistas e da relutância de damas e cavalheiros que, como guardiões dos preceitos de outras décadas, o envergam como se o tempo não tivesse passado por ele.
Reconhecer a silhueta criada por um chapéu como um clássico intemporal foi a base de partida para Francisco Faria e Tânia Senra, dois conhecidos que viraram sócios no exato momento em que decidiram partilhar um com o outro as respetivas intenções de negócio. “Fechámos a sociedade no dia em que nos conhecemos. Foi arriscado, mas estávamos tão alinhados que percebemos que tínhamos a mesma visão criativa”, explica o primeiro ao Observador. Ele soma uma longa carreira como manequim, ela, uma hat lover assumida, traz experiência na área comercial. Há um mês tornaram-se, oficialmente, os fundadores da Hurricane.
A marca, à semelhança de tantas outras, nasceu de uma falha no mercado. “Não havia nenhuma marca com a qual nos identificássemos. Ambos comprávamos chapéus, mas de uma marca australiana. Em Portugal, faltava este toque mais cool, mas também algo que fosse mais moda”, resume Francisco. A aposta foi certeira — mesmo antes do lançamento oficial, em meados de abril, a Hurricane começou a aguçar a curiosidade nas redes sociais com imagens tão fortes como o glamour despreocupado de Cher nos anos 70, o subliminar apelo sexual das “Les Petroleuses” Brigitte Bardot e Claudia Cardinale e Ralph Lauren, ele próprio a personificação do estilo de vida americano.
O estilo western foi a derradeira inspiração e os primeiros modelos (quatro e ainda uma versão para crianças) deram o tom. Qualquer um deles podia ter saído de um editorial de moda e, curiosamente, acabaram todos por chegar às cabeças de estrelas do Instagram, em Portugal, mas também em Espanha. A estratégia de comunicação passa por alcançar influencers e referências de estilo a nível ibérico — Teresa Andrés Gonzalvo, Marta Lozano e Pelayo Díaz e, do lado de cá da fronteira, Bárbara Inês e Concha de Lima Mayer, entre outras.
Harvey, o chapéu de cowboy, já é um best-seller. A internacionalização parece ser o caminho mais natural para a Hurricane. Com a produção localizada em São João da Madeira, as encomendas para fora do país representam mais de metade das vendas. Levar a marca para lojas físicas selecionadas também será uma forma de aumentar a visibilidade em mercados estrangeiros. “Por cá não há muita gente a usar chapéu. Está a aumentar agora, mas continua a ser lá fora que as pessoas arriscam mais”, remata Francisco.
São João da Madeira: o coração da chapelaria portuguesa
A cidade do distrito de Aveiro está para os chapéus como Paços de Ferreira está para o mobiliário português, embora a indústria esteja hoje longe da dimensão e do fulgor de outros tempos. A primeira fábrica de que há registo abre em 1802, embora pequenas oficinas de chapelaria possam ter começado a laborar muito antes. Mais de um século depois, em 1909, eram já 12 as unidades que produziam chapéus em São João da Madeira.
Mas foi preciso esperar até 1914 para assistir à abertura da Empresa Industrial de Chapelaria, Lda, conhecida na região como “Fábrica Nova”. Mecanizada e capaz de produzir cerca de 200 mil chapéus por ano, foi também a responsável pelos primeiros artigos em lã de merino, garantindo a produção dos chapéus mais em voga na época. Com a nova fábrica e o eclodir da Primeira Guerra Mundial inauguram um período de prosperidade para o setor.
De acordo com a Câmara Municipal de São João da Madeira, em 1946, a cidade concentrava 75% das unidades fabris dedicadas à chapelaria de todo o país — dos 1.775 operários que a indústria empregava, mais de 1.200 estavam ali. Na década de 60, a “Fábrica Nova” detinha o monopólio nacional da produção de chapéus. Fechou portas em 1995 e o seu edifício deu lugar ao Museu da Chapelaria, inaugurado dez anos depois.
Lemonade Collective: o chapéu está de volta
O esforço para ressuscitar o velho hábito de usar chapéu mais parece uma estratégia concertada. Lançada no final de abril, a Lemonade Collective é a mais jovem de uma nova vaga de marcas que está a tirar partido da chapelaria nacional. “Fiquei fascinada com o processo de produção. Os chapéus são feitos à mão, da mesma forma que eram feitos há 50 ou 60 anos”, explica Sílvia Silva, a fundadora, ao Observador.
A empresária (e designer gráfica) já trazia experiência no ramo, mas sobretudo ao serviço de outras marcas. A poucos quilómetros da cidade onde tudo acontece, é-lhe possível lidar de perto com fornecedores e fabricantes, testar materiais e novos modelos e trabalhar quase sem stocks. Aos modelos em feltro adiciona etiquetas em couro, fitas de camurça e pequenas peças metálicas, elementos que ajudam a criar “a diversidade que procurava” e que não encontrava no mercado nacional.
Mesmo com um vírus a afetar a economia e sem oferecer um bem essencial, Sílvia criou um negócio a solo, na esperança de que o made in Portugal, o valor acrescido da sustentabilidade e as próprias tendências de moda soprem de feição. “Diria que está a começar a pegar, já se nota uma procura maior por chapéus, muito à boleia do que já aconteceu com espanhóis e franceses”, resume. Além dos clássicos, a Lemonade Collective desdobra-se noutras opções — chapéus de praia para os dias de verão e modelos em pano, feitos a partir de tecidos parados em fábricas portuguesas. Até agora, as vendas têm sido maioritariamente no mercado nacional.
“Quis criar mais do que uma marca de chapéus bonitos”, admite. A empresária quis sobrepor os valores ao próprio produto e lançar uma marca ancorada na inclusão social. É por isso que, por cada produto vendido, um euro reverte para a Associação Portuguesa de Portadores de Trissomia 21. Uma vertente que quer desenvolver no futuro, com esta e outras organizações de cariz social.
Umbra: Portugal num chapéu
“Sabia que temos o maior fabricante de feltros para chapéus do mundo?” — a pergunta é feita por José Gaspar durante uma conversa sobre a vocação portuguesa para a chapelaria. Refere-se à FEPSA, um gigante se São João da Madeira há mais de 50 anos no mercado, principal fornecedor de matéria-prima da Umbra, a marca que lançou em dezembro de 2020, juntamente com Catarina Vassalo, conhecida designer de joias e acessórios.
A ideia já lhes pairava na cabeça, mesmo antes da pandemia. “Além de ser careca e de, obviamente, gostar de chapéus, num país com tanto sol, não tínhamos assim grandes marcas”, continua. Contou, por isso, com o know how da sua parceira de negócio, que em tempos se dedicou à millinery em terras de sua majestade. Ainda assim, conhecer a cidade dos chapéus e descobrir as suas mãos mais talentosas foi uma surpresa.
Atualmente, a maior parte da produção é feita numa pequena fábrica de São João da Madeira, onde trabalham quatro pessoas, mas há margem para envolver outros. “São estruturas muito pequenas e muitos dos artesãos que existem são difíceis de encontrar. Em parte, a grande tradição da chapelaria perdeu-se e assusta-me que, daqui a dez anos, quando algumas destas pessoas começarem a morrer, não se saiba quem vai dar continuidade a este trabalho”, afirma ao Observador.
Por enquanto a missão da marca é esta: aproveitar o que de melhor se faz em Portugal no que à chapelaria diz respeito. Manjerico, Filigrana, Pessoa e Arraiolos são alguns dos modelos que marcaram o lançamento, decorados com fitas coloridas e pequenas peças de metal, mas sempre possíveis de personalizar ao gosto do cliente. Meio ano depois, a oferta estendeu-se aos chapéus de pano reversíveis — padrões vibrantes para emparelhar com o verão. José antecipa ainda duas das novidades dos próximos meses — chapéus de praia e chapéus em palha, produzidos no Algarve. “Temos de recuperar o hábito de usar chapéu — como proteção contra o sol, mas também como acessório de moda. Não acho que se tenha perdido completamente, mas a concorrências das grandes cadeias também não ajuda. Mas nós temos os melhores”.
100% português é uma rubrica dedicada a marcas nacionais que achamos que tem de conhecer.