John Romão lembra-se do tempo em que não estar no mapa era como não existir. “Quando era miúdo, adorava pegar nos mapas que o meu pai tinha no carro. Tentava ver onde é que aparecia a aldeia dos meus avós e não aparecia nunca. Eram não-lugares.” Hoje, o mundo encurtado pelo Google Maps permite-lhe estar em Lisboa e “visitar a Nossa Senhora de Aracellis a trezentos e sessenta graus”.
O verão do ano passado levou o encenador, programador cultural, diretor e fundador da BoCA — Bienal de Artes Contemporâneas, a passar uma temporada em Beja, para onde os seus pais regressaram há pouco tempo. A reação à pandemia fê-lo religar-se “ao lugar, aos afetos, ao sentido de pertença” (conseguiu, por exemplo, reunir a família, “coisa que não acontecia há para aí quinze anos”). “Somos feitos dessas geografias, de puzzles de localidades. Sou do Alentejo, mas também sou da Alemanha (nasci lá), de Almada (onde vivi até aos 24 anos), de Lisboa, de Madrid, de Buenos Aires…”
John Romão nunca chegou a morar no Alentejo, mas era essa a geografia das suas romarias estivais. “Ia todos os verões, desde miúdo”. Num desses verões, em Beja, lembra-se de pedir ao tio que lhe marcasse uma reunião na Biblioteca Municipal para apresentar um monólogo sobre suicídio que tinha escrito na escola. Tinha 15 anos. “Fui com o meu tio, expliquei-lhes a ideia, disse-lhes que tinha preparado um bocadinho para verem. Puxei da cadeira e fiz cinco minutos do monólogo”.
O passado do Futurama começa, portanto, a desenhar-se na infância remota do artista em fermentação.
Era o verão a única estação
O verão pandémico de 2020, forçando o olhar sobre uma região que “tem estado muito fechada em si própria”, semeou nele a vontade de fazer nascer novidade a partir de uma ausência. “O meu primeiro impulso foi fazer um diagnóstico do que já existia a nível cultural e artístico”. Fez uma pesquisa aprofundada sobre práticas contemporâneas na região, leu teses e relatórios sobre o Alentejo, percebeu que os problemas estruturais comuns a quase todos os todos os municípios do Baixo Alentejo são, no essencial, quatro: “o despovoamento, a desertificação, a taxa de envelhecimento e o desemprego”. Outros problemas, como o dos acessos e da circulação entre povoações, são filhos desses. “Muitas vezes, o último autocarro dentro de um município é às cinco e meia da tarde, porque é a última aula da escola secundária. Isso impede o acesso à cultura. Alguém que tenha 16 ou 17 anos, que não tenha carta de condução nem pais que estejam disponíveis para o levar a um espetáculo ou a um workshop, fica muito isolado”.
Nesse trabalho de levantamento, saltou-lhe à vista “a urgência de haver projetos que apontem para a fixação da população jovem em idade ativa, na faixa etária dos 15-25. É uma idade que me interessa muito trabalhar, porque são o futuro e são aqueles que mais se podem interessar por práticas contemporâneas.”
O Futurama — Ecossistema Cultural e Artístico do Baixo Alentejo, apresentado publicamente no final de abril, vem ocupar um espaço em branco. “Não me interessa fazer a programação cultural que os municípios já fazem. Interessa-me uma linguagem contemporânea que não está contemplada nas programações que já existem”. No ano de arranque, o projeto abarca quatro municípios limítrofes da região: Beja, Serpa, Mértola e Castro Verde. Das quatro autarquias, a Câmara Municipal de Beja é a única que não se associa oficialmente ao projeto, nem com apoio logístico nem financeiro. Nos três restantes, diz Romão ao Observador, “fui muito bem recebido, os vereadores de cultura foram muito sensíveis e interessados desde a primeira reunião.”
Futurama — Um Ecossistema artístico assente em quatro pilares
O ecossistema Futurama divide-se, para já, em quatro habitats: um programa de Residências Artísticas, com dez criadores convidados a cruzar as suas práticas artísticas com as dimensões tradicional, regional e patrimonial do território; o Cantexto, onde escritores nacionais são desafiados a escrever para grupos de cante alentejano; as Constelações, que propõem encontros entre artistas contemporâneos e representantes dos ofícios tradicionais, e um Programa Educativo que já começou a aproximar o discurso da arte contemporânea do público escolar (o Futurama tem parcerias com todas as escolhas secundárias dos quatro municípios).
Os artistas em residência foram selecionados por uma equipa de programadores que vão ser diferentes a cada edição, e que não estão necessariamente ligados ao Alentejo — porque, diz Romão, “este é um projeto nacional, mais do que um projeto regional”. Este ano, o Futurama joga Filipa Oliveira (programadora da Casa da Cerca em Almada) nas Artes Visuais, Rui Horta (coreógrafo e bailarino, fundador do Espaço do Tempo em Montemor-o-Novo) nas Artes Performativas, Luís Fernandes (diretor do Gnration em Braga) na Música e Arte Digital e a dupla Joana Gusmão/Nuno Lisboa (ligados à Apordoc) no Cinema. Cada programador associado escolheu os artistas que vão habitar espaços específicos de cada município. As residências, a acontecer entre maio e outubro, são os primeiros passos visíveis do Futurama. Já em maio, a realizadora Salomé Lamas vai trabalhar na Casa das Artes Mário Elias (Mértola) e a artista visual Susana Mendes Silva vai desenvolver pesquisa no Museu Regional Rainha D. Leonor (Beja).
No caso do Cantexto, o objetivo de aproximar o cante alentejano, património imaterial da UNESCO, da literatura contemporânea, resultou no convite a meia dúzia de autores — Gonçalo M. Tavares, Matilde Campilho, Tiago Rodrigues, Patrícia Portela, José Luís Peixoto e Valério Romão — para conhecerem grupos de cante locais e escreverem para eles. O programa decorre entre julho e novembro.
O eixo das Constelações nasce da sensação, percebida em alguns momentos da pesquisa, de que “há um medo de que o contemporâneo venha esmagar o tradicional. Isso não existe, de todo. Nunca vai acontecer — porque, na verdade, o contemporâneo bebe do tradicional”. No final de julho, por exemplo, vão encontrar-se no Centro de Educação Ambiental de Vale Gonçalinho (Castro Verde), para um um percurso de observação de aves, João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, autores do filme “O Ornitólogo”, e um ornitólogo da Liga para a Proteção da Natureza.
O Programa Educativo divide-se em três braços: Geração Futurama, programa de formação presencial e online dirigido a jovens na faixa 15-25, O que é isso do Contemporâneo?, que todos os meses leva artistas às escolas secundárias dos quatro municípios, e A Revolução Somos Nós, projeto que homenageia Joseph Beuys, no centenário do seu nascimento, pondo em diálogo alunos de música do Conservatório Regional do Baixo Alentejo com alunos de têxteis da Escola Artística António Arroio.
O Futurama quer crescer. Em 2022, a ideia é fazer nascer o Futurama Festival, momento de programação concentrada que promova a circulação entre municípios e sirva como “plataforma de visibilidade de todo o trabalho desenvolvido ao longo do ano”. Os apoios financeiros — provenientes da Direção Regional de Cultura do Alentejo, da Fundação Millennium BCP, da Direção Geral das Artes e dos três municípios parceiros — são “ainda insuficientes para a envergadura”. John Romão espera que no próximo ano o investimento possa aumentar, e até que “outros municípios se possam somar a esta rede”.
No verão dos seus quinze anos, John Romão não chegou a apresentar o monólogo sobre suicídio na Biblioteca Municipal de Beja. Mais de vinte anos passados, regressa para lançar no território as sementes de um futuro que possa transformar a região por via da arte contemporânea.