Título: Autobiografia Não Autorizada
Autor: Dulce Maria Cardoso
Editora: Tinta da China
Páginas: 232
Preço: 16,90€

Uma das várias consequências da alteração dos hábitos de leitura nos últimos tempos é a de os poucos leitores que ainda resistem preferirem cada vez mais crónicas curtas semanais a romances. A opção é compreensível: a infinitude de alternativas leva a que textos curtos e desligados uns dos outros sejam tidos como preferíveis a uma literatura de maior fôlego. Além disso, a quase infinita oferta de autores a encaixar num quase inexistente tempo dedicado a eles torna a crónica curta não só um filtro tido como perfeito, mas também a fórmula ideal para acumular um certo saber de algibeira de que, sem esforço, fazemos uso em jantares de família onde esteja aquele primo mais erudito e maniento.

Não é por isso espantoso que uma parte considerável dos esforços editoriais se concentrem em torno de publicações de livros de crónicas. No entanto, nestas crónicas literárias acontece quase invariavelmente uma de duas coisas: se no caso de autores interessantes, por motivos fáceis de compreender, as crónicas são piores do que os livros (o autor não joga em casa, a curta extensão obriga a um esforço de síntese que enjaula o texto, a obrigação da periodicidade semanal impossibilita a consistência, etc.), no caso de autores desinteressantes, as crónicas tendem, quase sempre, a ser melhores do que os livros (o autor não joga em casa, a curta extensão obriga a um esforço de síntese que torna o texto digerível em pequenas porções, a obrigação da periodicidade semanal faz com que um ou outro se destaquem de entre a mediocridade, etc.).

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Vem isto a propósito da publicação de Autobiografia Não Autorizada: parece bastante evidente que esta coletânea pertence claramente ao primeiro grupo acima elencado.

Dulce Maria Cardoso procurou evitar a dispersão habitual deste estilo literário organizando as crónicas em torno da sua vida: dos desamores lisboetas à infância vivida em Lisboa, das idas a lojas de colchões à adolescência vivida em Cascais. A autora tenta captar a “beleza e o terror toscos da infância” a uma distância que evidentemente os distorce, como se vê, por exemplo, em “O Homem Sem Nome”, bem como o envelhecimento, os amores falhados, a incompetência prática para as tarefas do quotidiano e o medo da solidão filial e amorosa e como tudo isso fez de si escritora, mostrando ao leitor que existe uma correlação qualquer entre se ser escritora e, como se lê em “O Sul da Vida”, falhar-se “a maternidade, a grande festa da Expo e a inauguração do Lux, as discussões éticas sobre a clonagem da ovelha Dolly, a organização familiar das ceias de Natal, as manifestações para a independência de Timor-Leste, as férias em Cuba, o peso ideal”.

Dulce Maria Cardoso sabe, desde logo, uma coisa que escapa à vastíssima maioria dos escritores contemporâneos: ter uma voz não implica dizer as coisas de forma peculiar, não implica um uso errático dos parênteses, não implica fazer parágrafos inopinadamente. Tudo isso pode servir uma voz, mas nada disso a gera. Dulce Maria Cardoso raramente procura inovações formais por saber que o seu trabalho é o de contar histórias ao leitor e não de o ofuscar com o brilho do seu talento. No entanto, a qualidade das crónicas é bastante desigual e percebe-se em vários momentos que estas foram escritas por um maratonista a tentar correr os cem metros.

A tudo isto acresce a pandemia. O ofício da escrita é um dos mais fortes candidatos ao título de profissão mais antiga do mundo. Ser escritor no século XXI, como aliás no século XIX, acarreta sempre a frustração de se estar a chover no molhado, de se dizer o que já foi dito por pessoas infinitamente mais capazes milhares de vezes. Acontece que a pandemia trouxe consigo um novo normal, genuinamente diferente da nossa vida quotidiana. Ao fazê-lo, abriram-se portas a novas descrições de pessoas, para as quais os exemplos dos gigantes que nos antecederam de pouco valem. Há Boccaccio e Camus, claro, mas é manifestamente pouco se compararmos com os quatro ou cinco escritores que ao longo de mais de 2700 anos escreveram, por exemplo, sobre amores proibidos. Este caminho solitário que de repente se abriu escancarado aos novos escritores é ainda um trilho por explorar e talvez por isso as maneiras de o fazer pareçam sempre manifestamente insuficientes.

Perante a dimensão do desafio e a natural tibieza das suas armas, Dulce Maria Cardoso toma a decisão razoável de não procurar captar diretamente esta bizarra forma de vida, preferindo antes limitar-se a apontar quer para a sua estranheza, quer para a insuficiência da linguagem que julgamos descrevê-la na perfeição, como acontece, por exemplo, em “A Vida Anormal”, quando escreve que “continuamos a falar como se não nos faltassem palavras, como se as metáforas nos pudessem valer, esta guerra, um tsunami, o inimigo”. Talvez Autobiografia Não Autorizada seja isto: um livro sobre o quão pouco preparados estamos para enfrentar a vida.

joaopvala@gmail.com