Quando um jogador falha um golo que seria decisivo no último minuto, quando um jogador comete um erro que dá origem à vitória da equipa adversária, quando um jogador falha a grande penalidade que dita a eliminação de uma competição, o único conselho que pode ajudar a ultrapassar o trauma é o de um outro jogador. Especialmente se o aconselhador tiver estado exatamente na mesma posição que o aconselhado. E foi precisamente isso que Nicolas Anelka, antigo internacional francês, tentou fazer com Kylian Mbappé.

Esta segunda-feira, num artigo publicado no The Athletic, Anelka escreveu uma carta aberta ao avançado do PSG e tentou guiá-lo ao longo dos próximos passos que terá de cumprir depois do penálti falhado que carimbou a eliminação da seleção francesa contra a Suíça, nos oitavos de final do Euro 2020. “Adoraria dizer-te que isto vai ser fácil, que vais recuperar rapidamente e que voltar ao futebol será simples. Mas o futebol não funciona assim. Uma decisão por grandes penalidades é a melhor maneira de decidir um jogo quando ganhas mas, quando és eliminado, é muito cruel. É uma cicatriz que te marca, que vai desvanecendo mas que nunca desaparece realmente. Sentes-te totalmente sozinho. Tens de viver com isso e tens de trabalhar, trabalhar, trabalhar em campo, disputar jogos, marcar golos, ser capaz de começar a esquecer. Mas nunca vais esquecer-te por completo. Eu nunca me esqueci. Eu nunca me vou esquecer”, começou por dizer o antigo jogador, que recordou depois o momento semelhante por que passou na própria carreira.

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“Comigo, aconteceu em Moscovo, na final da Liga dos Campeões com o Chelsea, em 2008. Era o nosso sétimo penálti. O Edwin van der Sar defendeu para o Manchester United e a derrota do Chelsea caiu nos meus ombros. Foi muito difícil durante dois ou três meses. Voltar a jogar com a equipa na temporada seguinte, olhar os jogadores nos olhos, foi muito duro. Foi só através do ato de jogar, de marcar golos, que consegui ultrapassar aquela provação”, contou Anelka, recordando a final da Liga dos Campeões conquistada pelos red devils de Alex Ferguson, onde jogava Cristiano Ronaldo.

Em seguida, o avançado que também passou pelo PSG, pelo Real Madrid, pelo Arsenal e pelo Manchester City sublinhou que os adeptos e a opinião pública têm memória curta — e que Mbappé, há três anos e no Mundial da Rússia, foi o herói da seleção francesa que acabou por conquistar o troféu. “Os golos são uma forma de remediar as coisas mas são uma cura que dura pouco tempo. Fica tudo dentro da tua cabeça, é impossível apagar por completo. Os golos amenizam os efeitos, é verdade, mas não há forma de eliminar a sensação de que foi mesmo por nossa culpa que perdemos o jogo. Pode não ser justo mas, se somos nós a estar no momento decisivo, as pessoas vêem-nos automaticamente como culpados (…) Há três anos, no Mundial, foste o herói. De repente, França inteira já se esqueceu disso e tiveste de encaixar insultos. Não acho que isso seja normal. É a crueldade do futebol mas é algo que tens de aceitar”, explicou o antigo jogador, que defendeu ainda que o grande problema de França neste Europeu foi a vulnerabilidade do setor defensivo.

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“Falar com outras pessoas, jogadores mais velhos ou jogadores que já acabaram as carreiras, pode ajudar. Sem isso, é possível entrar em sofrimento. Ouvir aqueles que têm mais experiência pode ajudar-te a reagir a esta situação (…) Eu voltava ao Chelsea todos os dias por isso vivi com isto num ambiente mais veloz. As distâncias entre as datas dos jogos internacionais significam que podem passar dois ou três meses entre um jogo de França e o próximo, por isso, vai ser diferente para ti. Os próximos jogos e as próximas exibições vão mostrar a toda a gente o quão forte mentalmente tu és. Isto até pode tornar-te mais forte. Vamos ver isso nos próximos jogos, nas próximas épocas (…) Tu és maduro mentalmente e podes retaliar”, acrescentou Anelka, que não escondeu que a “mentalidade francesa” vai dificultar o processo, porque as pessoas vão “recordar constantemente o que aconteceu, vão repetir constantemente”.

Sobre o futuro de Mbappé, o antigo avançado francês deixou a certeza de que o jovem jogador terá de ser “paciente” e aprender a “virar a página” — para além de que terá de, a dada altura, deixar o PSG. “Parece que vais ficar por mais um ano mas, depois disso, tens uma grande decisão para tomar. Tens, pelo menos, duas opções: ficar em Paris ou ir para o Real Madrid. Essa decisão depende daquilo que queres alcançar no futebol. Se queres as maiores distinções, vais ter de sair do PSG a dada altura. Tudo o que fizeres no PSG vai ser bom mas alguém vai sempre dizer ‘foste ótimo no PSG mas isso foi só em França, as melhores ligas estão em Inglaterra e em Espanha e não competiste com os melhores jogadores nas melhores ligas’. Vais ter de decidir. Se queres ganhar a Bola de Ouro, que é aquilo que devias para perseguir para te igualares ao Cristiano Ronaldo e ao Lionel Messi, tens de competir com os melhores. Não podes dizer que competiste sempre com os melhores se ficares no PSG. Por isso, se queres ser um dos melhores, vai fazer o que fazes em Paris mas no Chelsea, no Manchester United, no Arsenal, no Manchester City ou no Liverpool. Ou vai para Espanha, para o Real Madrid ou para o Barcelona. Ou talvez Itália. Mas só aí é que podemos falar de um impacto global”, acrescentou Anelka.

Por fim, o antigo jogador deixa apenas votos de “bon courage”, muita coragem, a Mbappé. Afinal, é principalmente disso que o jovem avançado vai precisar nos próximos meses.