Os fantasmas das falhas na execução dos fundos europeus estão aí, mas António Costa quer empenhar-se em afastá-los. A promessa é clara e direta: depois de ter sido o primeiro a apresentá-lo, Portugal vai ser “o melhor” país a executar o seu Plano de Recuperação e Resiliência.
A garantia foi deixada no final de um discurso de mais de meia hora nas jornadas parlamentares do PS, em Caminha. Um discurso que serviu sobretudo como uma espécie de relatório e contas: a dias do debate do Estado da Nação, António Costa traçou o panorama de dois anos de legislatura — que são já seis de Governo — em “quatro marcas” e deixou promessas otimistas para o futuro, com foco no PRR.
“Temos agora um novo instrumento e ele não caiu do céu: nasceu da vontade comum dos europeus”, frisou, recordando os tempos em que andou entre “Budapeste e Haia” para vencer os bloqueios na UE ao “maior plano desde o Plano Marshall para responder a uma crise económica”. Foi por causa desse esforço que Portugal que “quis ser o primeiro” a apresentar o PRR.
Agora, isso “não basta”: “Temos algo muito mais ambicioso — a ambição de sermos os melhores a executar o nosso PRR”. O ano e meio de pandemia “tem sido duro”, mas o tempo é de olhar para o futuro, insistiu Costa: “Vamos ser os melhores”, palavra de primeiro-ministro.
O resto do discurso foi dedicado às tais quatro marcas que o primeiro-ministro diz definirem o seu Governo. Em primeiro lugar, a capacidade de resposta do SNS e o esforço para cumprir o plano de vacinação– com um “obrigado muito especial” ao vice-almirante Gouveia e Melo. Tinha uma farpa guardada: ao enumerar os ataques que foram feitos à gestão na Saúde, pediu um “esforço de memória” para lembrar as piores previsões destes meses: “Que ia faltar tudo, que ia haver rutura no SNS, que os médicos iam ter de ter a necessidade de escolher quem vivia e morria”.
Não era uma referência inocente: Ricardo Batista Leite, coordenador do PSD na área da Saúde e médico de profissão, chegou em janeiro a garantir que vivera no hospital de Cascais “um cenário de guerra” em que testemunhara essas escolhas. “Os que o disseram devem se lembrar e devem pedir desculpa por aquilo que disseram”, irritou-se Costa.
Depois, o secretário-geral do PS, que falou sobretudo enquanto primeiro-ministro focou a forma como o Governo respondeu a esta crise económica, evitando a austeridade e diferenciando-se da direita — uma fronteira que o PS já tinha tentado traçar na abertura das jornadas, quando se quis retratar como o único partido que poderá tomar conta da governação nos próximos anos.
Outra marca passa exatamente pelas consequências dessa gestão diferente da da direita — segundo Costa, o melhor indicador é comparar a taxa de desemprego atingida na crise anterior, 18%, com o pico desta (até ver), 8%, assim como a confiança dos investidores externos, uma referência que evidencia o esforço por ‘roubar’ e esvaziar o discurso económico da direita.
Por último, Costa quis frisar o foco mantido, apesar de tudo isto, nos desafios que tinha traçado no início da anterior legislatura (do combate às alterações climáticas e às desigualdades à transição digital).
Costa guardou ainda uma palavra para a “dimensão institucional” que não faltou apesar do foco na pandemia. Exemplos? A extinção do SEF, a estratégia anticorrupção e a “modernização do comando das Forças Armadas”, esta última concretizada “contra ventos e marés”.
O retrato foi sempre otimista, mesmo tratando-se de uma análise a um ano e meio de pandemia. Costa ainda tomou um momento para assumir que Portugal “não é o país das maravilhas” e que não há razão para “lançar foguetes” (falava aqui dos números do desemprego), mas focou-se nas partes mais positivas da governação — e na comparação com a direita, sobretudo nos tempos da troika.
Perante a plateia de deputados e poucos governantes — o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro, a secretária de Estado da Modernização Administrativa, Marina Gonçalves, e o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues — Costa entusiasmou com as promessas de futuro. A próxima tarefa será gerir a crise e o PRR, fintando, em ambos os casos, os fantasmas do passado.
Ferro duvida de medidas nos concelhos de risco
Antes de Costa, tinha sido tempo para Eduardo Ferro Rodrigues tomar a palavra para uma breve intervenção, deixando transparecer muita desconfiança sobre as medidas de alerta do Governo para aplicar nos concelhos de risco e questionando mesmo a sua eficácia.
Assumindo-se “preocupado com o que se está a passar nestas semanas”, porque tinha esperança de que, “ganhando a corrida das vacinas”, a descida dos casos fosse “quase automática”, Ferro fez uma incursão pela ironia: “Estas variantes não são como as autoestradas, são mais perigosas”.
E deixou encomendas para a próxima reunião do Infarmed, marcada para 27 de julho: é preciso um “balanço dos resultados práticos dos concelhos mais severamente atingidos e ainda confinados”, porque o presidente da Assembleia da República estranha “todas as semanas” ouvir que o alerta “continua a aumentar” nesses concelhos. E também pediu mais informação sobre a “distribuição etária dos mortos e internados”.
Ferro terminou com duas felicitações: uma pela “extraordinária presidência da União Europeia” e outra antecipada e dirigida diretamente a António Costa, que fará 60 anos este fim de semana, quando estiver em viagem a Angola com Marcelo Rebelo de Sousa.