A onda de protestos por causa da pandemia de Covid-19 pedia a queda do governo da Tunísia. O Presidente Kaïs Saïed acedeu aos apelos da população e destituiu o primeiro-ministro Hichem Mechichi. O partido com maior representação parlamentar, Ennahdha, contesta a decisão.
O Presidente invocou o artigo 80.º que permite a suspensão das atividades do parlamento, mas não a sua dissolução, alegando “perigo iminente”, noticiou o jornal Le Monde. Saïed anunciou que estará à frente do poder executivo e que vai nomear um novo chefe de governo.
Horas depois de destituir o primeiro-ministro e suspender o parlamento por 30 dias, o presidente levantou a imunidade de todos os deputados e decretou também a exoneração dos ministros interinos da Defesa e Justiça, Ibrahim Bartaji e Hasna Ben Slimane. Após esta decisão — que se seguiu ao encerramento do parlamento justificado pela necessidade “de recuperar a paz social e salvar o Estado e a sociedade” –, as duas pastas serão dirigidas por secretários-gerais ou por responsáveis de assuntos administrativos e financeiros dos respetivos departamentos até à designação de um novo primeiro-ministro e a formação de um novo executivo, revelou a Presidência em comunicado.
A mesa do parlamento reuniu-se esta segunda-feira pela primeira vez após a dissolução de Assembleia e definiu a iniciativa de Said de “odioso golpe de Estado”, exortando o Exército e as forças de segurança a “respeitar o seu juramento e proteger a Constituição e preservar o Estado e as instituições”.
Rached Ghannouchi, presidente do hemiciclo e líder do partido islamita conservador Ennahda, desmentiu ter sido consultado e fornecido a sua aprovação à dissolução, como referiu Said, que assegura ter recorrido ao artigo 80.º da Constituição que lhe concede o poder de adotar “medidas excecionais” perante um “perigo iminente” após consultas ao chefe de Governo e presidente do parlamento.
“O que Kaïs Saïed fez foi um golpe contra a revolução e contra a Constituição. Os apoiantes do Ennahdha, assim como o povo tunisino, defenderão a revolução”, refere uma nota do partido, que apoiava o primeiro-ministro, independente, agora destituído. Outros partidos, como o Coração da Tunisia e Karama, também concordam que se trata de um golpe.
O presidente da Autoridade Superior Independente para Eleições (ISIE), Nabil Baffoun, considerou as decisões do Presidente inconstitucionais e não concorda que se realizem novas eleições, noticiou o Tunisie Numerique.
Segundo avança o Tunisie Numerique, Kaïs Saïed está a ponderar sobre a escolha do nome do sucessor, algo que poderá acontecer nas próximas horas e o Presidente hesita entre Taoufik Charfeddine, ex-ministro do Interior que foi demitido por Hichem Mechichi durante sua última tentativa de remodelação ministerial, Nizar Yaîche, conhecido pela sua proximidade com a presidência de Kaïs Saïed. Também o nome de Marouane Abassi, atual governador do Banco Central, é citado. O quarto nome que circula nos bastidores em Cartago, é Imed Hazgui, que já ocupou o cargo de Ministro da Defesa Nacional.
O chefe do governo destituído do cargo, Hichem Mechichi, publicou um comunicado esta tarde onde explicou que assumiu o cargo num dos momentos mais difíceis do país, “em plena crise económica e social” e que a situação atual o levou a tomar medidas “impopulares com intuito de preservar a vida dos tunisianos, bem como os seus empregos”.
Mechichi recordou que seu governo foi obrigado a dar continuidade às iniciativas dos antigos governos “para evitar a falência do país” e sublinhou que fez o possível para administrar a crise com repercussões mínimas para a económica. O antigo primeiro-ministro revelou a sua preocupação em fazer com que o país “evite mais tensões”, diz compreender a “impaciência” das pessoas, colocando-se “ao lado do povo tunisino e das suas escolhas”. Hichem Mechichi desejou ainda sucesso ao seu sucessor, garantindo que estava pronto para continuar a servir o país, concluindo que estará “sempre ao serviço do Estado em qualquer ocasião”.
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Saïed reuniu-se esta segunda-feira à noite com o magistrado Youssef Bouzakher, o presidente do conselho superior da Magistratura, a magistrada Malika Mzari, presidente do conselho da magistratura judicial, bem como o magistrado Abdelkarim Rajeh , o vice-presidente do conselho administrativo judiciário. No encontro disse estar preocupado em respeitar a constituição e a aplicação da lei e revelou o seu interesse na independência do judiciário neste momento crítico. O Presidente reitou ainda o seu apelo aos tunisianos para não optarem pela violência nas ruas.
Conflitos entre Presidente e governo não são novos
Rached Ghannouchi, líder do partido e presidente do parlamento, juntamente com outros deputados, foi impedido de entrar no edifício do parlamento. As atividades do parlamento foram suspensas durante 30 dias, conforme ordem do Presidente, mas a Assembleia dos Representantes do Povo reuniu esta segunda-feira por videoconferência.
A imunidade parlamentar dos deputados foi levantada pelo Presidente e, com isso, há 65 deputados impedidos de deixar o país, incluindo o presidente do parlamento.
Os protestos foram a justificação do Presidente, mas os conflitos que opõem Kaïs Saïed a Hichem Mechichi e Rached Ghannouchi não são novos, explicou a BBC. O facto de o primeiro-ministro ter demitido recentemente o ministro da Saúde, aliado do Presidente, aumentou ainda mais a tensão.
Segundo a Constituição tunisina, o Presidente é responsável pela defesa (militares) e pelos assuntos externos, mas agora Saïed diz que vai governar ao lado do próximo primeiro-ministro.
Os membros do parlamento e o Presidente são eleitos por voto popular, mas o primeiro-ministro é escolhido pelo partido com maior representação parlamentar, daí que o Ennahdha conteste a vontade de Saïed nomear um novo chefe de governo.
Como reação às medidas do Presidente, Rached Ghannouchi pediu aos tunisinos que encham as ruas em protesto “como em 14 de janeiro de 2011” — a data em que o Presidente Zine El Abidine Ben Ali, no poder há 24 anos, fugiu, depois de uma onda de protestos que durava há cerca de um mês.
O presidente do parlamento turco, Mustafa Sentop, criticou a decisão do Presidente da Tunísia de suspender a atividade do parlamento, eleito pelo povo, considerando-o um golpe contra a Constituição, noticiou o Tunisie Numerique.
Raide da polícia fecha as instalações da Al Jazeera
Sem aviso prévio e sem mandato, um grupo de cerca de 20 polícias fortemente armados invadiu as instalações da emissora Al Jazeera, em Tunis, expulsou todos os jornalistas e confiscou o material. Como justificação para o raide, os polícias disseram estar a cumprir ordens do sistema judicial.
Os jornalistas tiveram de desligar os telefones e não foram autorizados a voltar ao prédio para recuperar seus bens pessoais. Repórteres Sem Fronteiras (RSF) condenaram a invasão do escritório da Al Jazeera na Tunísia e o envolvimento dos media em conflitos políticos, segundo a emissora Al Jazeera.
Segundo Tunise Numerique, numa nota divulgada na sua página, o canal de televisão privado do Catar Al Jazeera denunciou o assalto de suas instalações em Túnis pelo exército nacional. “As ações das autoridades tunisinas estão a aumentar de forma preocupante e tememos que isso prejudique a cobertura profissional e imparcial.”
Recolhimento obrigatório no país até 27 de agosto
Esta tarde, a Presidência da República decidiu estabelecer o recolhimento obrigatório das 19h às 6h, de segunda-feira, 26 de julho, até 27 de agosto. A medida proíbe a circulação de pessoas e veículos na via pública e entre cidades, exceto casos urgentes de transporte de doentes ou pessoas que trabalham durante a noite. Qualquer ajuntamento de três pessoas ou mais está igualmente proibida em locais públicos. A Tunísia registou mais de 200 mortes por Covid-19 nas últimas 24 horas.
EUA pedem que Presidente da Tunísia respeite “princípios democráticos”
O secretário de Estado dos Estados Unidos pediu ao Presidente da Tunísia que respeite os “princípios democráticos”. Antony Blinken pediu, durante um telefonema, a Kais Saied que “mantenha um diálogo aberto com os atores políticos e o povo tunisino”, de acordo com Departamento de Estado. O chefe da diplomacia norte-americana “encorajou o Presidente [tunisino] a respeitar os princípios democráticos e os direitos humanos que são a base da governação da Tunísia”.
Blinken prometeu também apoio à economia do país africano e ao combate à pandemia da Covid-19, um elemento-chave nas manifestações que ocorreram no país e levaram Kais Saied a suspender os trabalhos no parlamento.