Enviado especial do Observador, em Tóquio

Um ciclo olímpico, um ciclo que desta vez teve até cinco anos em vez de quatro por causa da pandemia, tem sempre envolvido um sem número de pormenores que passam à margem de uma larga maioria que se senta e espera os melhores resultados desportivos – mesmo que Pedro Pablo Pichardo tenha mostrado esta manhã em Tóquio uma superioridade tão grande que parecia tudo fácil. Dois treinos por dia, uma meia folga por semana na melhor das hipóteses, zero vida social a não ser a família nos tempos livres. Ah, e muito cuidado com o corpo, seja na recuperação, seja na dieta. No final da prova, ainda para mais com a conquista de uma medalha histórica, há margem para desacelerar um pouco, mesmo que seja apenas por um par de dias. Se não existissem restrições, e como um bom português, o que seria esta noite o jantar?

“Olha, no início não gostava de bacalhau à brás mas houve uma pessoa que uma vez me disse ‘Tu vais gostar, vais ver’. Levou-me a casa dela e experimentei. Agora gosto de bacalhau à brás. Sim, hoje seria bom…”. Mais logo saberemos se teve sorte ou não, não vá aparecer uma boa surpresa de uma qualquer empresa de entrega de comida, daquelas que ao 14.º dia em Tóquio deixam quase de existir porque se pode andar pelos mesmos locais do que qualquer cidadão local, que realize o desejo do quinto campeão olímpico português. Até lá, fica a festa. Não total, porque Pedro Pablo Pichardo queria uma marca que lhe permitisse bater o recorde mundial ou o recorde olímpico (apesar de ter batido o nacional), mas suficiente para perceber aquilo que ele próprio já sabe quando nos diz na zona mista a importância do título por Portugal.

Depois do quarto lugar no Mundial de 2019 em Doha que lhe ficou atravessado e da vitória nos Europeus de Pista Coberta deste ano que o deixou insatisfeito pela marca (17,30), Pichardo quer aproveitar o momento e colocar uma pedra nas polémicas em torno da naturalização e da rivalidade com Nelson Évora. Nasceu em Cuba mas quis ser português, gosta de ser português e já sabe o hino e tudo como um cidadão nacional que só não consegue deixar de ter o sotaque cubano, mesmo com a perceção de que nem todos o veem assim.

“Não sei explicar bem a questão do processo de naturalização. No início foi o Benfica, a Federação e o Comité que trataram dos documentos mas o motivo não sei… Eu acho que deve ser por uma questão política. Ainda hoje não posso voltar a Cuba e o meu pai também não. Se moro em Portugal, onde poderia ficar? O que ia ser da minha vida? Antes de ser português tinha outras opções, ainda hoje tenho. De Cuba também! Se sou um campeão olímpico… O Azerbaijão dava-me muito mais do que o Benfica e do que Portugal. Não foi uma escolha feita assim… As pessoas acham que foi uma questão por causa do Nelson Évora mas não foi… Aliás, em Cuba não há clubes, não sabia aquela confusão de Sporting e Benfica antes de chegar…”, começou por referir, antes de abordar também o ruído à sua volta exatamente por essa questão dos clubes também.

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“É complicado porque às vezes as pessoas ofendem-me como pessoa e acho que é uma falta de respeito porque as pessoas não me conhecem e começam a falar, a chamar nomes… Não deveria ser assim. Eu nunca falei mal do Nelson. Uma pessoa enviou-me um link de um comentário por causa de uma coisa do abraço… Eu não falo nada do Nelson, não falo nada do Nelson e era bom acabar com isso, para não levar os problemas para a parte pessoal. Há anos que fala de mim e eu não respondo nada. Inveja? Não sei. É como ele diz, já ganhou tudo, porque não me deixa agora fazer a minha carreira? O tempo dele passou, eu não falo nada, deixe-me fazer a carreira em paz… Apoio ao Zango? Todo o mundo está a ver, não sou eu… Para mim tanto faz, não faz diferença nenhuma. Quer continuar com a p0lémica mas eu não falo nada”, disse ainda sobre as conversas que o antigo campeão olímpico em 2008 teve com o atleta burquinense durante a final, depois de terem trabalhado duas semanas em conjunto antes de Zango chegar depois a Tóquio.

(mais tarde, já depois de tudo isto e da zona mista de Pichardo, Nelson Évora colocou no seu Instagram uma imagem do triplista dizendo ‘Muitos parabéns, Pedro’ e ‘Bingo para Portugal’ pelas quatro medalhas)

A bandeira com que festejou no final foi a mesma com que tinha festejado em Torun a primeira medalha de sempre por Portugal, nos Europeus de Pista Coberta, mas até mesmo entre o apoio foi percebendo que ainda existem aqueles que não ultrapassaram a questão da naturalização. “Quero dedicar [a vitória] a toda a malta portuguesa. Se percebia onde estavam na bancada? Sim, era fácil de identificar. Tinham um polo vermelho, havia muita malta da comitiva. Já tinha sentido lá na Aldeia Olímpica o apoio dos portugueses, embora alguns continuem a falar do ex-cubano…”, referiu, numa perceção que gostava que chegasse ao fim.

O campeão que quer marcas e recordes (e que se voltou a cortar no tornozelo num salto)

Alguns atletas passam pela zona mista já descalços, sem os ténis que usaram na corrida ou com os mesmos ainda debaixo do braço. Foi assim por exemplo que, mesmo ali ao lado, Hansle Parchment, jamaicano que se sagrou campeão olímpico dos 110 metros barreiras com uma ponta final fantástica onde bateu o americano Grant Holloway, falou com os quatro jornalistas do país que estavam à sua espera. Pichardo estava tal e qual como tinha saído da prova, ainda com as meias calçadas com a marca de sangue na direita por um corte que fez na quarta tentativa. “É normal. Não sei bem, os meus pés quando estão no ar fazem assim [e faz com as mãos o gesto de algo solto sem rumo] e depois acontece isto, nos treinos é a mesma coisa”, conta.

“Fácil? Toda a gente acha que é fácil mas dá trabalho. Não é fácil, não é fácil…”, atira de sorriso bem rasgado, com o aparelho bem à mostra. Pichardo sente-se confortável ali. Sente-se bem. Mesmo assim, admite que gostava de ter feito melhor. É verdade, essa foi uma das considerações do quinto campeão olímpico nacional.

“O salto não correu como estava à espera. Estava à espera de fazer um salto maior, estava à espera de bater algum recorde. Ou o recorde olímpico ou o recorde mundial. No sábado estávamos a preparar este dia, consegui o meu melhor salto com sete passadas e o meu treinador disse que devíamos tentar bater algum recorde, olímpico ou mundial, mas durante o aquecimento senti uma dor no quadríceps e quando começou a competição estava com receio. Mas sou campeão olímpico! Se o importante é a medalha? Em parte, sim, mas eu também gosto de fazer grandes saltos. As medalhas são importante mas também gosto de ficar nos livros dos recordes. Vou continuar a trabalhar para isso”, salientou a propósito da vitória com 17,98, um registo que já não existia numa final do triplo masculino dos Jogos desde a edição de Atlanta, em 1996.

Se sou imbatível? Nunca se pode falar assim, soa um bocado arrogante, chegares a uma competição e dizeres que és imbatível. Não estás a respeitar os adversários, não sou assim.”

“Fiquei um bocadinho surpreendido com o nível da concorrência. Estava à espera que fizessem uma prova melhor, pelo menos contra mim. Entre eles fizeram uma competição mas esqueceram-se de mim, deixaram-me sozinho lá em cima. Pelo menos do Zango e do Will Claye, não sei, alguém que me fizesse concorrência. Pronto, não aconteceu, ainda melhor”, assumiu no final de um concurso onde até a marca que fez nos dois primeiros ensaios, a 17,61, teria sido suficiente para garantir na mesma a medalha de ouro.

“Se foi um dia perfeito? Não, foi bom. Eu e o meu treinador [e pai] somos muito exigentes, quero fazer grandes marcas. Não quero ser campeão olímpico com 17,60, quero ser campeão olímpico como fui mas a fazer também grandes marcas”, assumiu, antes de explicar aquele momento onde parou para rezar: “Sou uma pessoa religiosa. Tenho alguns rituais que faço antes e durante a competição [religião Iorubá]. Esta foi a pedir força, uma das coisas que sempre peço é muita força e sair da competição saudável”. “Se o Presidente da República já me ligou? Ainda não mas também não tenho o telefone, nem falei com o meu pai…”, disse.

A avó no pensamento, os que lhe chamam ex-cubanos e o hino que aprendeu a cantar

Ao contrário do que aconteceu depois da qualificação, em que parou na zona mista mas pediu para ser uma conversa rápida para poder ir descansar após o 17,77 que lhe valeu entrada direta na final, Pichardo estava ali o tempo que fosse preciso. Além de falar com o pai e com a família, comer e ir buscar a medalha mais logo (e ir à conferência, e ir ao controlo etc.), não tinha muito mais a fazer. E foi assim que explicou o porquê de ter nas bancadas uma ex-campeã olímpica a apoiar e a importância do título para a própria família.

“O meu pai não sei como está mas a minha mãe deve estar agora a chorar e a gritar em casa sozinha. Está lá no Pinhal Novo, está lá sozinha. Imagino o que ela deve estar para lá a gritar e a chorar, deve estar uma loucura… O meu pai não sei se já não tomou os comprimidos, que ele tem uns problemas de tensão. Calmo? Ele gosta de mostrar que está tudo controlado mas por dentro não está. A Ibarguen é minha companheira de treino, já está há dois anos a treinar com o meu pai. Mora em Portugal, no Montijo”, contou (e já deixou a dica para se ir ao Montijo fazer um trabalho depois dos Jogos Olímpicos). Mas foi a avó já falecida que lhe puxou um pouco mais por algo que muito raramente faz: exteriorizar as suas emoções.

“Quando apontei para o céu a seguir ao 17,98 estava a agradecer. A minha avó já morreu há alguns anos… Pronto, eu não posso entrar em Cuba, era a mãe do meu pai. Eu saí de Cuba e continuei no desporto por ela, antes de sair de Cuba falei com a minha avó e ela deu-me autorização. Sabia que eu não ia voltar mais e que poderia acontecer o que aconteceu, que ela morresse e eu não a visse mais. Todos os saltos que faço são a com o pensamento na minha avó. Quinto salto? Acabei por prescindir porque queria ir buscar um recorde, mundial ou olímpico. Era isso que estava na minha cabeça, no último salto dei tudo”, destacou, dizendo ainda que “amanhã será um dia normal” e que já pensa em ganhar a Liga Diamante, em setembro: “Não paro, gosto de continuar sempre a trabalhar, levar tudo para casa. Sou um atleta muito ambicioso”.

“O título significa muito para o meu pai, muito. Deve estar agora muito feliz, a chorar por aí, sei lá… Este título significa mais para ele do que para mim porque em Cuba disseram que não sabia treinar, que não fazia parte da Federação de Treinadores, tentaram tirar o título de licenciado, mandaram-no embora de treinador, ainda foi para treinador de beisebol… Fizeram tanta coisa que o meu pai teve de sair para morar na Suécia três anos porque em Cuba não podia treinar e chegar agora que é um bom treinador e um bom pai, deixa-o muito feliz. Ontem já me estava a dizer que se ganhasse ia fazer um comentário nas redes sociais contra Cuba e contra a Federação [a fazer o gesto de maluco] Ele também é um bocado…”, referiu ainda.

“Se em Cuba festejaram? O povo ou a família? Família sim, o povo… É complicado. Saí de Cuba, para eles sou um traidor mas sou o primeiro campeão olímpico do triplo nascido em Cuba. Agora já não sou cubano, agora faço parte do grupo dos cinco portugueses campeões olímpicos. Cuba está esquecido. Não tenho documentos cubanos, não tenho nada, só a família. Ainda hoje ouvir que alguns me chamam ex-cubano… É complicado para mim. Tenho quatro anos a trabalhar para dar medalhas ao meu país e ver que um português não se sente feliz por um estrangeiro que representa o seu país e se sente feliz por representar o seu país, é um bocado complicado para mim… É um bocado ingrato. Eu sentia-me feliz se um português chegasse a Cuba e se sentisse mais cubano do que eu. Moro em Portugal há quatro anos, a minha filha nasceu lá vou dizer sempre que estou a representar o meu país…”, atirou entre alguma revolta interior à mistura.

“Já sei cantar o hino há muito tempo, o único problema é que canto com sotaque. O meu sotaque de cuba nunca vai desaparecer mas sei falar português, quero falar melhor português. Sei o hino mas com sotaque cubano. Aprendi como uma canção, foi assim que a minha professora de português ensinou, a cantar. Para mim vai ser fácil, tranquilo. Para mim, é o meu hino desde que sou criança. Pouca emoção? Eu sou mesmo assim… Agora vou para o quarto e faço a festa sozinho lá. Tenho muita vergonha, não sou assim muito emotivo, não gosto de falar muito. Sou reservado, tenho muita vergonha. Quando vejo muitas pessoas fico envergonhado. Até foi bom o estádio estar vazio, com muita gente fico envergonhado”, concluiu.