Uma corrida nunca foi “apenas” mais uma corrida. Sempre que entra na pista, Allyson Felix carrega aos ombros uma luta maior. “Quero que o meu legado seja o de alfguém que lutou pelas mulheres”, disse a velocista à CNN, num artigo publicado cerca de um mês e meio antes de a norte-americana se apresentar em Tóquio para mais uma jornada olímpica. Ali, na capital nipónica, Felix ergueu uma nota bandeira: a de velocista mais medalha em Jogos Olímpicos, com 10 pódios em cinco edições diferentes — um marco que a colocou ao nível do mítico Carl Lewis.
Essa marca histórica, e que a destaca ainda mais num patamar superior do atletismo norte-americano (e do desporto mundial), foi alcançada na prova dos 400m, que Felix disputou esta sexta-feira. A atleta de 35 anos (completa os 36 em novembro) compete nos seus quintos Jogos consecutivos.
Esteve em Atenas2004 e foi 2ª nos 200 metros; foi a Pequim2008 e repetiu o resultado anterior, mas conseguiu superar o tempo que trazia da Grécia (e ainda trouxe o ouro nos 4x400m); vimo-la em Londres2012, onde foi ainda mais longe e arrebatou o ouro na modalidade, com um tempo de 21,88 (e ainda conquistou o 1º lugar nas modalidades 4x100m e 4x400m); e, há cinco anos, competiu no Rio2016, regressando do Brasil com outras três medalhas (prata nos 400m e ouro nos 4x100m e 4×400). Deixemos de fora os pódios que reclamou em mundiais, ligas diamante, entre outras competições.
Mas uma marca em particular — o recorde de Carl Lewis, as 10 medalhas olímpicas e esse lugar reservado aos seres de outra dimensão — estava mesmo ali à espreita. Estava. Deixou de estar. Esta sexta-feira, Felix arrancou para a prova de 400 metros e disputou a medalha até aos últimos centímetros da pista. Terminou a prova atrás de Shaunae Miller-Uibo (Bahamas) e de Marileidy Paulino (República Dominicana) e com a jamaicana Stephenie Ann Mcpherson a morder-lhe os calcanhares. Foi à justa, mas Felix levou a melhor. E subiu ao pódio.
Terá um sabor ainda mais especial pelo contexto em que acaba por acontecer. O último ano e meio foi atípico (para dizer o mínimo) para todos os atletas. As limitações impostas pela pandemia — com o adiar desta edição dos Jogos para um ano mais tarde, com as implicações maiores que isso tem para a prestação de uma veterana como Felix —obrigaram a norte-americana a recorrer a alternativas para garantir que não deixava escapar a sua quinta ida consecutiva ao palco maior do desporto mundial.
Com os ginásios fechados e perante a necessidade imperiosa de manter a forma e não desleixar no rigor da preparação física, Allyson Felix virou-se para os campos de futebol vazios e para os areais de Los Angeles. “Foi uma experiência e tanto, com muita coisa que eu nunca poderia ter previsto, muitos desafios pelo caminho”, assumiu a norte-americana à CNN. “Ter simplesmente um local fixo para treinar foi o maior dos desafios”, contou Felix. “Nunca pensei que o caminho para Tóquio seria assim.”
Um novo sentido para o “legado” Felix
É verdade que, de uma forma ou de outra, todos os atletas que estão na capital nipónica por estes dias terão um testemunho semelhante para partilhar. Mas há outro detalhe na caminhada de Allyson Felix que torna o recorde desta sexta-feira ainda mais especial no caso da norte-americana: a 10ª medalha olímpica chega apenas dois anos depois do nascimento da sua filha Camryn. Esse “detalhe”, a maternidade (uma experiência que veio com alguns percalços iniciais à mistura), acabou por dar-lhe mais força para continuar. “Ter uma filha pequena em casa é um mundo completamente novo. Deu-me uma motivação diferente”, admite no mesmo artigo da CNN.
E é aqui que voltamos ao tal “legado” que a atleta quer deixar inscrito na história do desporto. Camryn tornou-se fonte de inspiração e, ao mesmo tempo, o destino da mensagem à volta da qual Felix quer construir o que lhe resta da sua carreira desportiva. Um objetivo que, conta, nasceu de uma reflexão tão comum entre aqueles que olham para a sua descendência e começam a busca por um sentido maior. “Sempre senti o desejo de vencer. Agora, tudo se resume à forma como quero mostrar-lhe como superar as adversidades.”
As ideias que partilhou com a CNN, em junho, acabam por ser o melhor resumo da força de Felix para lutar por esse legado. “Penso que se me fizesse essa pergunta há alguns anos, [eu teria respondido que se trata de] recordes na pista ou quão rápido eu corri. Mas, agora, penso que é sobretudo o objetivo de ter algum impacto no meu desporto.” O ponto é este: “Quero mesmo que o meu legado seja o de alguém que lutou pelas mulheres”
E se a voz de Allyson Felix já era escutada antes de Tóquio, ela só se tornou ainda mais audível com a superação demonstrada na pista: é, atualmente, a mulher mais medalhada de sempre na corrida em pista.