Pilotos envolvidos na operação de resgate de estrangeiros e afegãos em Cabul descreveram um cenário de caos em terra e de condições de voo difíceis, em que cada um está praticamente “por sua conta e risco“.
“Fiz alguns voos não convencionais, mas este foi exigente e bastante longo”, disse o piloto de um A319 da Força Aérea Checa, que transportou 62 pessoas de Cabul na passada quarta-feira.
Com Cabul sob controlo dos talibãs desde 15 de agosto, o aeroporto da capital tem sido o principal ponto de fuga de milhares de estrangeiros e afegãos, numa “ponte aérea” sob controlo de militares dos Estados Unidos e seus aliados.
Ao fator de segurança, os pilotos envolvidos na operação acrescentam o facto de o aeroporto internacional Hamid Karzai se localizar a 1.800 metros de altitude numa planície rodeada de montanhas, bem como um tráfego aéreo intenso e ausência de ajudas à navegação.
“Tivemos de manter a nossa distância no ar e aterrar uns atrás dos outros. Estávamos à procura de frequências para comunicarmos uns com os outros”, contou o “major MM” na página da Internet do Ministério da Defesa checo, citado pela agência France-Presse.
O sistema de controlo de tráfego aéreo de emergência mal era audível, disse, e as decisões eram deixadas à tripulação, com os controladores apenas a dar informações, cada uma delas pontuada por um “por sua conta e risco”.
Para chegar à única pista do aeroporto e descolar, o piloto checo seguiu as indicações do Sistema Anticolisão de Tráfego (TCAS, na sigla em inglês), “tal como os outros”.
“Conseguíamos ver a distância entre nós no monitor TCAS e essa era, além das comunicações diretas entre pilotos, a principal forma de coordenação”, explicou.
Os norte-americanos, com 5.800 homens no aeroporto, “fazem todo o controlo de tráfego aéreo, controlo em terra, controlo de torre e controlo de aproximação”, segundo o comandante Stephen, piloto de um A400M francês que só pode ser identificado pelo primeiro nome.
“Com um avião como este, somos muito assistidos pelo nosso sistema, mas acabamos por aterrar à vista”, disse à AFP a partir da base francesa 104 em Al-Dhafra, nos Emiratos Árabes Unidos, um ponto de paragem para os voos de resgate franceses.
“O facto de o sistema nos ajudar muito permite que nos concentremos no exterior, para controlar as ameaças”, disse, aludindo ao receio de ataques com mísseis.
A ITV Turquia divulgou imagens de um A400M da Força Aérea francesa a descolar de Cabul e a lançar foguetes, que emitem calor e “baralham” o sistema de deteção de alvos dos mísseis.
Na aproximação à pista, o avião faz uma descida abrupta para “evitar a ameaça” de mísseis, explicou. As rotações dos aviões são rigorosas, caso contrário “não seria possível” porque são muitos e de países diferentes.
O comandante Stephen disse que os pilotos têm de respeitar em absoluto o tempo que lhes é imposto: “meia hora entre a aterragem e a descolagem”. No solo, “parece um formigueiro de grandes aviões, mas bem organizado”, descreveu.
Em 12 horas, na segunda-feira, 15 aviões militares dos EUA e 34 de outros países retiraram de Cabul quase 11.000 pessoas.
Quando aterrou em Cabul na manhã de 15 de agosto, o dia em que os talibãs entraram na capital, tudo estava normal, recordou Maqsoud Barajni, um piloto da Pakistan International Airlines (PIA).
Depois, “reparei que havia pânico no exterior, que a situação era anormal. Cada vez mais pessoas corriam para dentro do aeroporto e ouviam-se tiros”, contou.
Foi-lhe dito que os voos comerciais tinham sido suspensos, mas optou por descolar, apesar da ausência de controladores aéreos e beneficiando da boa visibilidade, que permitiu “evitar o tráfego militar”.
O seu A320, segundo disse, foi o último avião comercial a descolar de Cabul.
Pouco antes dele, o seu colega Uzair Khan, um piloto de um B777 da PIA, também teve de “gerir a situação” com passageiros particularmente em pânico a bordo.
“A maioria deles eram membros do gabinete do Presidente [Ashraf] Ghani ou do seu governo. Eles estavam a fugir do país com as suas famílias e estavam a pressionar-nos para descolarmos o mais rápido possível”, disse à AFP.
“Eles estavam prontos para deixar o Afeganistão a qualquer custo”, afirmou.
Desde então, os afegãos continuam a afluir ao aeroporto, situado a 16 quilómetros do centro de Cabul, e muitos dos que conseguem embarcar deixam o seu país num avião sobrelotado.
Para o coronel francês Yannick Desbois, comandante da base 104, “é preciso manter a calma, analisar o desempenho técnico da aeronave e apenas levar a bordo as pessoas que se puder”.
Um A400M francês tem normalmente 110 lugares sentados, mas na operação de Cabul voam com “até 235” passageiros sentados no chão, em “condições de segurança”.
Os C-17 norte-americanos são concebidos para transportar até 400 passageiros, mas um deles transportou 829 nas primeiras horas da operação de Cabul.
A bordo, “as pessoas estão cansadas. A pressão está desligada (…). Em geral, estão a dormir e nós estamos a fazer o nosso trabalho”, acrescentou o comandante Stephen.
Mais de 53.000 pessoas foram retiradas do aeroporto de Cabul desde julho, mais do que as que saíram da base aérea de Tan Son Nhut, no Vietname, em 1975, com a queda de Saigão.