Não houve violência. Ao contrário do que a polícia temia, não ocorreu nenhum episódio de violência nestas manifestações do dia 7 de setembro — mas a violência metafórica esteve presente nas palavras do Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, que colocou todas as fichas na radicalização e no confronto com juízes, voltou a lançar dúvidas sobre a fiabilidade dos resultados eleitorais e até abriu a porta à possibilidade de não abandonar o cargo caso perca as próximas eleições presidenciais de 2022. Bolsonaro, a braços com uma crise de impopularidade, quis fazer prova de vida e utilizou as manifestações deste Dia da Independência do Brasil para carregar na crise institucional que se vive no país e que opõe o líder do poder executivo ao topo do poder judicial. Parece difícil acreditar que daqui para a frente este governo possa continuar a liderar tranquilamente o país durante mais um ano, data em que se realizam novas eleições presidenciais.

A madrugada fez antever um dia tortuoso, com os apoiantes do Presidente a furar o bloqueio de segurança e a tentar entrar na zona proibida aos manifestantes na Praça dos Ministérios, próxima do Supremo Tribunal Federal (STF). Ao longo do dia, também se multiplicaram os relatos de jornalistas que davam conta de que o controlo de segurança não estava a ser tão apertado como o prometido — na Avenida Paulista em São Paulo, por exemplo, não houve revista dos participantes, ao contrário do que tinha sido garantido pelo governador João Doria.

Mas estes presságios não se confirmaram e, ao final da tarde, a multidão de verde e amarelo abandonava tranquilamente a Paulista e entrava nas dezenas de autocarros vindos de todo o ponto do país que aí os havia levado, levando consigo os cartazes onde acusavam o Supremo Tribunal de ser um poder ditatorial. Noutro lado da cidade, no Vale de Anhangabaú, a oposição continuava a festa com gritos de “Fora, Bolsonaro”, mas também iam esvaziando as ruas.

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Um Presidente contra o Supremo Tribunal

A violência ficou toda reservada para os discursos do Presidente. Primeiro em Brasília, da parte da manhã, Bolsonaro participou na cerimónia habitual do feriado em que é hasteada a bandeira do país. Acompanhado de crianças, acenou à multidão, a partir do carro onde seguia — o Rolls-Royce presidencial, desta vez conduzido pelo antigo campeão de Fórmula 1 Nelson Piquet. De seguida, em cima de um camião, discursou a centenas de pessoas (os organizadores garantiram que estariam cerca de 3 mil apoiantes no local, mas a polícia fala em 400 pessoas).

Ali, ensaiou o tom: “Aqui, na Praça dos Três Poderes, jurámos respeitar a nossa Constituição. Quem anda fora dela, ou se enquadra ou pede para sair”, afirmou Bolsonaro, pedindo ainda ao presidente do Supremo Tribunal, Luis Fux, que afastasse “quem não se enquadra”. O Presidente não disse o nome de Alexandre de Moraes, mas era dele que falava. É o juiz do Supremo que tem conduzido investigações ao Presidente e a alguns dos seus principais apoiantes, por suspeitas de ligação a centrais de notícias falsas, e que é agora o inimigo principal do bolsonarismo — muito embora as decisões do Supremo sejam tidas como coletivas e a autorização às investigações tenha sido dada pelo coletivo.

O próprio não fugiu ao confronto e utilizou o Twitter a meio do dia para responder à ofensiva do Presidente, também evitando usar o nome de Bolsonaro e sublinhando a defesa da democracia no país, que diz necessitar de “absoluto respeito”.

À tarde, perante a multidão bem maior na Paulista (cerca de 140 mil pessoas, segundo a polícia), Bolsonaro já não se ficou pelas acusações veladas ao juiz. Ali explicitou quem é o homem que não se enquadra: “Ou Alexandre de Moraes se enquadra ou ele pede para sair”, ordenou, acrescentando que “não obedecerá mais” às ordens desse juiz. Através dos altifalantes, o Presidente usou diretamente o nome do juiz, a quem chamou de “canalha” e avisou que “o seu tempo já se esgotou”.

O ataque também subiu de tom contra o Tribunal Superior Eleitoral. Jair Bolsonaro voltou a agitar suspeitas contra o sistema eleitoral do país, que acusa de não ser auditável. Pediu o voto impresso em vez do eletrónico — proposta já chumbada pelo Congresso — e deixou no ar a possibilidade de não respeitar os resultados se a eleição se mantiver nos moldes atuais. “Não posso mais participar de uma farsa patrocinada pelo presidente do TSE [Tribunal Superior Eleitoral]”, disse, sem usar o nome de Luís Roberto Barroso.

Com sondagens em queda, Bolsonaro lança suspeitas sobre sistema eleitoral

Para além dos ataques a juízes, que acentuam a crise entre os diferentes poderes que se vivem no país, os discursos de Bolsonaro trouxeram outro elemento perturbador da normalidade democrática. Primeiro, foi o anúncio de convocatória do Conselho da República (órgão consultivo convocado para momentos de crise como o decreto do estado de sítio) para esta quarta-feira a fim de mostrar “a foto” dessa manifestação aos líderes da Câmara dos Deputados e do Congresso.

A acontecer tal reunião — os membros disseram não ter sido ainda convocados —, Bolsonaro prepara-se para agudizar a crise institucional. Como explica o Estado de S. Paulo, o objetivo dessa reunião seria o de “dizer aos outros Poderes que, supostamente, tem o apoio do povo para ser absoluto no País e fazer o que bem entender”. O braço-de-ferro entre instituições pode agudizar-se, ainda para mais se tivermos em conta que a resposta mais provável dos poderes legislativo e judicial será o de resistir aos avanços do Presidente. Ainda esta manhã, o presidente do Congresso Rodrigo Pacheco declarou que é importante “a absoluta defesa do Estado Democrático de Direito”.

A jogada de Bolsonaro neste 7 de setembro pode até forçar um instrumento que até então parecia estar fora de questão: a abertura de um processo de impeachment. O PSDB, até então dividido nesta questão, foi um dos partidos que convocou uma reunião de emergência para discutir essa possibilidade — e o governador de São Paulo (e membro do partido) João Doria deixou claro que se afastou de vez de Bolsonaro e que tenciona capitalizar o momento, surgindo como alternativa, ao defender abertamente a destituição do Presidente.

Doria e outros, como Eduardo Leite (outro antigo bolsonarista agora opositor do Presidente e putativo candidato presidencial), leem o ar dos tempos e tentam assumir-se como uma terceira via a Lula da Silva — que não se pronunciou no dia 7 de setembro — e a Bolsonaro nas eleições de 2022. As sondagens mostram claramente que o Presidente atravessa o seu pior momento de popularidade, com uma taxa de rejeição acima dos 60%, acentuada pela crise sanitária do Covid-19, o aumento da inflação e os escândalos de corrupção que envolvem o governo e a família do Presidente.

Brasil. Bolsonaro quer um golpe ou apenas recuperar a popularidade?

Bolsonaro também sabe ler bem a disposição popular e entende que a popularidade de outrora se esvaiu. “Nesse modo de desespero em que está o Presidente Jair Bolsonaro, ele já olha [para a possibilidade de] um cenário desfavorável”, resume o analista da Globo Gelson Camarotti. É precisamente por estar encurralado que Bolsonaro convocou esta manifestação e radicaliza o discurso, numa tentativa de pelo menos manter consigo a sua base eleitoral. Como apontou Camarotti, “ele joga para o tudo ou nada”.

Daí que no discurso da Paulista Bolsonaro tenha subido ainda mais o tom: “Dizer àqueles que querem me tornar ineligível em Brasília: Só Deus me tira de lá. Preso, morto ou com vitória. Dizer aos canalhas que eu nunca serei preso”, afirmou Bolsonaro perante a multidão. A narrativa é clara e semelhante à que já foi ensaiada por Donald Trump nos Estados Unidos: a manter-se o voto eletrónico e caso Bolsonaro seja derrotado nas urnas, o Presidente abre a porta à possibilidade de recusar aceitar o resultado das eleições.

E mais: com o floreado de que pode ser “preso” ou “morto”, Bolsonaro acicata os seus apoiantes ao reforçar as teorias da conspiração dos que dizem que irá ser afastado pelas “elites” de Brasília através de alguma ferramenta que não o voto popular. Perante a perda de apoio da população e com um ano de governação ainda pela frente, Bolsonaro prefere pintar-se como mártir a governar e arriscar perder os seus indefectíveis. O 7 de setembro foi o instrumento para mostrar que Jair Bolsonaro ainda vive. Resta saber o que lhe reservam os próximos meses.