Tintin, Astérix, Lucky Luke ou Pocahontas são algumas das personagens que desapareceram das estantes de algumas bibliotecas escolares no Canadá. Ao todo, quase 5 mil livros terão sido destruídos e 30 deles terão sido queimados num ritual de “purificação pelas chamas”, como forma de reconciliação com os povos indígenas. A decisão de destruir os livros considerados racistas (4.716, uma média de 157 livros por biblioteca) foi do Conselho Escolar Católico de Providence, que tem a seu cargo 30 escolas católicas no sudoeste de Ontário.

O caso remonta a 2019 e envolve Suzy Kies, ligada ao partido de Justin Trudeau, atual primeiro-ministro canadiano e que se encontra em plena campanha eleitoral. As eleições gerais estão agendadas para 20 de setembro e Trudeau espera voltar a constituir Governo. A revelação acontece também numa altura em que o Canadá tem sido abalado com a descoberta, nos últimos meses, de centenas de corpos de crianças indígenas, enterrados sob escolas residenciais, para onde eram levadas, depois de retiradas à força das suas famílias. Mais de 4.100 crianças morreram enquanto as frequentavam.

Desenterrados corpos de 215 crianças nos arredores de uma antiga escola residencial

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A revelação da destruição dos livros foi feita esta terça-feira pela Radio-Canada, que teve acesso a um vídeo onde se explica aos alunos a cerimónia, da autoria de Suzy Kies que terá ajudado o conselho escolar a escolher os livros que deviam sair das prateleiras. “Enterramos as cinzas do racismo, da discriminação e dos estereótipos na esperança de crescer num país inclusivo, onde todos possam viver com prosperidade e segurança”, ouve-se no vídeo. Depois de queimar os livros, as cinzas foram usadas como fertilizante para plantar uma árvore e assim transformar algo negativo em positivo, escreve a Radio-Canada.

“Esses livros foram ou estão em processo de reciclagem”, explicou a porta-voz do conselho, Lyne Cossette, argumentando que os livros retirados tinham conteúdo desatualizado e impróprio. “É um gesto de reconciliação com as Primeiras Nações e um gesto de abertura para com as outras comunidades presentes na nossa escola e na nossa sociedade.”

A designação “pele vermelha” usada por Tintin para se referir a um indígena é considerada ofensiva

A Radio-Canada teve também acesso a um documento no qual constam os títulos eliminados e as razões que justificaram o seu desaparecimento das bibliotecas escolares. Há bandas desenhadas, romances e até enciclopédias. O uso de referências como “índio”, “esquimó” ou “pele vermelha” (como acontece nos livros de Tintin ou Astérix) é considerado ofensivo, assim como a sexualização de mulheres indígenas em livros como “Astérix e os Índios”, ou num livro sobre Pocahontas, onde a ameríndia é retratada com imagens da autoria da Disney.

“As pessoas entram em pânico com a queima de livros, mas estamos a falar de milhões de livros que trazem imagens negativas dos indígenas, que perpetuam estereótipos, que são realmente danosos e perigosos”, argumentou Suzy Kies, citada pela Radio-Canada. Kies, que era também co-presidente da Comissão dos Povos Indígenas do Partido Liberal do Canadá desde 2016, demitiu-se depois da polémica e de notícias recentes que punham em causa a sua descendência de povos indígenas.

A queima dos livros tem gerado críticas de vários setores da sociedade canadiana, com alguns dos autores visados a queixarem-se de serem alvo de censura.

JustinTrudeau, questionado por jornalistas numa ação de campanha, afirmou que “a um nível pessoal, nunca concordaria com a queima de livros”. No entanto, considerou que não cabe a pessoas não indígenas “dizer a indígenas como devem sentir-se ou agir para promover a reconciliação”. Já Erin O’Toole, líder do Partido Conservador, afirmou ser “possível remover livros e bandas desenhadas sem queimá-los”, sendo necessária também “uma abordagem respeitosa para as questões de reconciliação”.