“Fizemo-la da maneira certa, porque fizemo-lo da maneira europeia e eu acho que ela funciona”. Foi assim que a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, classificou o processo de compra e distribuição de vacinas contra a Covid-19 dentro da União Europeia (UE) no discurso do Estado da União, que decorreu esta manhã em Estrasburgo.

No discurso — feito uma vez por ano perante os membros do Parlamento Europeu — Von der Leyen começou por abordar a pandemia e a vacinação, mas o verdadeiro cerne da sua intervenção foi a viragem para a política externa, com a presidente da Comissão a abordar desafios como o Afeganistão e a Bielorrússia e a defender abertamente uma política de defesa comum entre os 27 Estados-membros.

“Temos vindo a desenvolver uma espécie de ecossistema de defesa europeu, mas aquilo de que precisamos é de uma União de Defesa Europeia”, disse, antes de anunciar que a Comissão Europeia irá realizar em 2022, com o apoio da presidência francesa da UE, uma cimeira sobre o tema, bem como discutir uma nova parceria com a NATO. “Aquilo que nos tem limitado até agora não é apenas uma falta de capacidade, mas sim a falta de vontade política”, sentenciou Von der Leyen.

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Durante a intervenção de cerca de uma hora, em três línguas (inglês, francês e alemão), Von der Leyen abordou temas tão diferentes como o combate às alterações climáticas, a entrega de vacinas contra a Covid-19 a países em desenvolvimento ou os projetos de política financeira comum que tem para a União. O fio condutor que os une a todos foi um discurso onde a presidente da Comissão pareceu tentar criar um lugar para a União Europeia como ator político mundial, que quer promover um “acordo mundial” para uma taxa mínima corporativa, pressionar a China a respeitar limites das emissões de dióxido de carbono e enviar vacinas contra a Covid-19 para o resto do mundo. E, é claro, ajuda humanitária ao Afeganistão — resta explicar como.

Emoção pelo Afeganistão, mão dura com Lukashenko

A referência ao Afeganistão foi provavelmente o momento mais emotivo de todo o discurso de Von der Leyen: “Quero ser clara: Nós apoiamos o povo afegão”, disse a presidente da Comissão, lamentando os ataques a jornalistas, a situação mais precária das mulheres e as crianças em risco de fome.

Estamos ao lado do povo afegão, das mulheres e crianças”, acrescentou Von der Leyen, destacando “as juízas que se escondem agora dos homens que tinham mandado para a prisão”.

A presidente da Comissão não poupou nos lamentos pela situação no Afeganistão, prometendo um aumento no pacote de ajuda humanitária ao país, adjudicando mais 100 milhões de euros. Ficou por esclarecer, porém, se há negociações a decorrer entre responsáveis europeus e o regime talibã ou se a Europa pretende reconhecer o atual governo. Também não foi feita qualquer reflexão sobre o papel das forças europeias na região ao longo dos últimos 20 anos.

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Neste ponto, Von der Leyen reconheceu ainda a dureza das imagens que saíram do aeroporto de Cabul, após a retirada das tropas norte-americanas:

Assistir aos eventos no Afeganistão foi profundamente doloroso para os familiares e amigos dos soldados que caíram em combate”, afirmou, relembrando que os europeus tiveram presença militar naquele mesmo terreno.

Relativamente às ameaças próximas da fronteira europeia, Ursula von der Leyen aproveitou o discurso do Estado da União para deixar palavras duras ao regime de Alexander Lukashenko, na Bielorrússia: “O regime em Minsk instrumentalizou seres humanos”, disse a presidente da Comissão, relativamente ao caso do voo da Ryanair desviado em pleno espaço aéreo europeu.

“Continuaremos ao lado da Lituânia, da Letónia e da Polónia”, acrescentou, referindo-se aos países da UE próximos da Bielorrússia. “Isto é um ataque híbrido às fronteiras europeias e não o toleraremos”, avisou a presidente da Comissão — não anunciando, contudo, quaisquer sanções para Minsk ou qualquer outra medida concreta.

Auto-elogios no combate à pandemia e propostas ousadas de política financeira

Ursula von der Leyen aproveitou o discurso do Estado da União para elogiar o papel da sua própria Comissão relativamente aos esforços de vacinação, destacando o número de cidadãos europeus já vacinados e também o número de vacinas enviadas para outros países do mundo.

Fomos os únicos que partilhámos metade das nossas vacinas com o mundo”, declarou, acrescentando que a UE irá enviar mais 200 milhões de doses para países de baixo rendimento até meados do próximo ano — que se somam aos 700 milhões já enviados.

Também relativamente à emissão de certificados digitais, Von der Leyen manteve o tom satisfeito: “Enquanto os outros falavam, a Europa fê-lo”, disse, relativamente à emissão de 400 milhões de certificados de vacinação.

Apesar de começar por elencar os sucesso da sua presidência relativamente à pandemia de Covid-19 — um período que, relembra, “é uma maratona e não um sprint” —, a presidente da Comissão Europeia reconheceu que ainda há trabalho a fazer relativamente à questão da vacinação. Por um lado, Von der Leyen sublinha que é necessário continuar o esforço de exportação de vacinas para outros pontos do mundo. Por outro, a presidente abordou ao de leve a questão dos negacionistas na Europa, recusando-se, contudo, a entrar a fundo no tema: “Vamos fazer tudo o que é possível para que esta não se torne numa pandemia dos não-vacinados”, afirmou.

Relativamente à pandemia, Von der Leyen não falou sobre as dificuldades de coordenação entre os 27 Estados-membros. Contudo, no plano fiscal, a presidente da Comissão Europeia revelou ter um projeto ambicioso para o próximo ano: tentar criar um entendimento para reformar as regras financeiras dos Estados-membros da União.

Destacando que o crescimento na zona Euro “ultrapassou tanto os EUA como a China no último trimestre”, a presidente da Comissão diz que é tempo de alcançar um “consenso” relativamente a reformas fiscais, nomeadamente o limite de dívida que os países europeus são obrigados a respeitar (60% do PIB).

A UE tem de refletir sobre como esta crise afetou a economia”, diz Von der Leyen. “Para isso, vamos relançar a discussão sobre este tema nas próximas semanas.”

Ainda sobre questões económicas e financeiras, a presidente da Comissão Europeia deixou uma crítica relativamente ao desfasamento fiscal entre diferentes países da UE e deixou duas propostas da Comissão para “lutar contra a evasão e a fraude fiscal”: um projeto de lei para taxar lucros dissimulados atrás de empresas de fachada; e tentar conseguir um acordo mundial para uma taxa mínima de imposto às empresas. “Pagar uma quantidade justa de impostos, não é apenas uma questão de política financeira, mas é sobretudo uma questão de igualdade”, sublinhou Von der Leyen, que elegeu este tópico como uma das prioridades da política financeira europeia para o próximo ano.

Alterações climáticas: críticas à China e aos EUA

O combate às alterações climáticas foi também um dos tópicos nos quais a presidente da Comissão Europeia mais se focou, dando particular destaque à conferência climática de 2026, marcada para Glasgow, a COP26. Von der Leyen destacou como alguns países (onde se inclui Portugal) se têm comprometido com metas para atingir a neutralidade carbónica, mas deixou um aviso: “É bom, mas é preciso ter planos concretos até Glasgow.”

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Foi precisamente a falta de dados concretos nesta matéria que fez com que Von der Leyen atacasse a China nesta matéria: “Cada país tem uma responsabilidade”, disse.

Os números dados pelo Presidente Xi [Jinping] são bons, mas pedimos mais compromisso: dizer como vai a China fazer para os atingir”.

Mas os Estados Unidos não se livraram igualmente de críticas neste tópico. Ao prometer um pacote de mais quatro mil milhões de euros para países em desenvolvimento em matérias de combate às alterações climáticas, a presidente da Comissão pediu aos EUA que também “se cheguem à frente” nesta matéria. Em pouco mais de uma hora, saltando de tema em tema, Von der Leyen deixou claro o mote para este ano: a sua Comissão quer puxar dos galões europeus e chamar os outros países à pedra, mesmo que sejam as grandes potências. Por enquanto, porém, as críticas ficam reservadas à área do combate às alterações climáticas.