No início era apenas um sonho mas, 27 anos depois, esse sonho concretiza-se na Quinta da Conraria, em Coimbra, onde os 5.ª Punkada, banda de utentes da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra (APCC), estão a gravar o primeiro disco. Na pequena sala de música da APCC, batizada com o nome do criador do grupo – o musicoterapeuta Francisco Sousa, já falecido -, quatro músicos com paralisia cerebral ou deficiência mental, um musicoterapeuta, técnicos e artistas convidados registam, por estes dias, temas para o álbum de estreia dos 5.ª Punkada, que sai em dezembro.

“Estão a ser dias stressantes”, admite Fausto Sousa, 53 anos, único dos fundadores ainda na formação. Apesar dos nervos, é visível o prazer e a emoção do vocalista, letrista e ‘frontman’: “É um passo muito importante para a banda. Está a ser melhor do que esperava”, conta à agência Lusa. No dia em que tiver o disco na mão, será “um sonho realizado”.

Há 27 anos, com outros três utentes e o apoio de Francisco Sousa, o grupo de rock nasceu na APCC. Já deram mais de três centenas de concertos, entre Portugal, Espanha, Itália, França, Bélgica, Alemanha, Grécia e Finlândia. Faltava um disco para “legitimar e validar um bocadinho a ideia de artista”, concorda Paulo Jacob, musicoterapeuta que hoje coordena o grupo, onde é guitarrista.

“Mas”, nota, “um disco é apenas 10% do que a banda é”: “O que nos interessa de facto é tocar ao vivo. Aí é que se pode desconstruir uma série de preconceitos”.

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Débora Umbelino, que dá vida a Surma, é uma das convidadas. No primeiro dia de gravações, chegou cheia de nervos, assume. “Tinha medo do que ia fazer, de deixar a desejar, de como é que ia ser com eles”. Mas logo se rendeu: “Foi incrível, uma daquelas experiências em que sais com o coração a rebentar de amor por todo o lado”. No dia em que a Lusa acompanhou as gravações na Quinta da Conraria, Victor Torpedo (Tédio Boys, The Parkinson) era o convidado. Manhã cedo, a boa disposição entre músicos e técnicos contrastava com o dia cinzento.

Torpedo viu-se ao vivo pela primeira vez, há 20 anos, na discoteca Day After, em Viseu, e sabe como é: “Aqui estás sempre ‘up’, a adrenalina está lá sempre toda, assim é que é. Sinto-me completamente em casa”. No estúdio improvisado, estão Fausto, Jorge Maleiro e Miguel Duarte. Falta neste dia a teclista Fátima Pinho. Antes de gravar a voz, Fausto opera com o Soundbeam, interface que permite, recorrendo a ultrassons, transformar movimentos em música. Na cadeira de rodas, o músico agita-se, numa fruição performática com que manipula o que sai das colunas.

O baterista Miguel Duarte, 22 anos, com trissomia 21, e o guitarrista Jorge Maleiro, 25, com síndrome de Williams, observam. Foram os últimos a entrar na banda, em 2018: Miguel, mais introvertido, Jorge, sempre a animar as hostes. “Estes dias estão a ser dos mais felizes da minha vida. Nunca gravei um disco, é a primeira vez. É muito fixe, é único e inexplicável”, conta Jorge, que quer ser músico profissional. “Quando soube que ia haver disco, pensei: ‘A minha vida de músico vai começar'”.

De volta ao estúdio, a música vive do momento. Selecionaram temas antigos e recentes, mas é tudo alimentado a liberdade, do que brota nas sessões. Surma, por exemplo, trouxe sininhos, auto-harpa e juntou-lhes as vozes, “meio Sigur Rós”. O resultado “foi qualquer coisa!”, recorda Débora. Já Victor Torpedo chegou e tocou sobretudo guitarra. “Gosto de fazer como eles: é chegar e gravar. É muito mais produtivo e refrescante. Senti-me cheio”.

Mais do que rock, blues ou funk, o resultado “é, acima de tudo, música”, diz Paulo Jacob. As letras, essas, estão a cargo de Fausto Sousa. “Escrevo sobre o meu estado de espírito”. Há de tudo, mas “geralmente são mais tristes”.

O disco dos 5.ª Punkada tem o apoio do Instituto Nacional de Reabilitação e é um desafio lançado pela Omnichord. Hugo Ferreira, da editora, assume “imenso carinho e admiração” pela banda, uma “deslumbrante lição de superação e de inspiração”. Conheceu-os no final dos 1990 e, a partir daí, já os levou ao Palco RUC na Queima das Fitas e ao concurso Ensina Fade In, em Leiria. “Faltava gravarmos um disco e poder depois apresentá-lo ao vivo”.

“É um sonho com décadas a tomar forma e vai ser um disco tremendo e um marco nas vidas de todos os envolvidos”, garante o editor. Victor Torpedo subscreve: “Não estou a brincar: foi um dos pontos máximos da minha carreira”, garante o histórico músico dos Tédio Boys e The Parkinsons. “Vai ser um ‘albumzão’ incrível. Estou mortinho é para tocar com eles ao vivo”.

Confirmado está o concerto de apresentação no Teatro José Lúcio de Leiria, em 23 de dezembro, em Leiria. Para 2022 projeta-se uma digressão. Entretanto, está já em elaboração um documentário. No conjunto, a história dos 5.ª Punkada e este disco têm forte simbolismo. “Acaba por ser uma forma de passar a mensagem universal de superação e não só: também acaba por ser uma grande lição em termos sociais”. conclui Paulo Jacob.