Tudo começa com um homem grande, talvez grande de mais, com cara de bebé gigante, a acompanhar a mãe, já algo idosa, até uma casa de banho comum. Depressa um pai sai do seu quarto, com a filha, para a mesma casa-de-banho. Ao chegar à porta, volta atrás e apanha produtos para limpar a casa-de-banho antes que a filha a use. É um gesto que instala o espectador na sala comum onde toda a ação de “Love” acontece. O gesto de higienização desaparece rapidamente da peça, como símbolo de uma certa conformidade com a realidade e aceitação de que aquele espaço – uma residencial — não será apenas temporário. É também um gesto, entre vários ao longo da peça, que trabalha o humor como ferramenta para humanizar as personagens, nunca para as tirar do seu sítio.
“Love” é a estreia de Alexander Zeldin (n. 1985) em Portugal. O dramaturgo apresenta esta quinta e sexta-feira na Culturgest de Lisboa (pelas 21h00) a sua segunda peça de uma trilogia chamada simplesmente “The Inequalities” (as “desigualdades”, assim apresentada, pela primeira vez, no Vienna Festwochen), do qual fazem parte “Beyond Caring” (2015), trabalho que lhe trouxe muita atenção e diversos prémios, e, mais recentemente, “Faith, Hope and Charity”.
Antes de fazer carreira em Londres no início da década passada, Alexander Zeldin passou pela Rússia, Coreia do Sul, Médio-Oriente e pelo Festival de Nápoles. Foi na East 15 Acting School, ao desenvolver uma série de trabalhos com os seus alunos, que começou a pavimentar um teatro de encontros com as vidas de milhares de pessoas que tendemos a esquecer. Em “Beyond Caring” tudo acontece num encontro noturno entre trabalhadores temporários numa fábrica de carne; em “Love” a ação desenrola-se toda numa sala comum, que tanto serve para as personagens comerem como para transitarem entre espaços.
“Beyond Caring” estreou-se em 2014 no Yard Theatre em Hackney, Londres, e poucos meses depois a peça foi transferida para o Temporary Theatre no National Theatre (atualmente, Zeldin é diretor associado deste teatro). Foi também aí que “Love” estreou em 2016. A peça que pode agora ser vista na Culturgest acontece à volta do Natal. A ideia surgiu quando o autor descobriu que em 2016 existiam cerca de 7500 famílias a viver temporariamente em bed & breakfast ou em residenciais no Reino Unido. Nesse mesmo ano, cerca de 120 mil crianças passaram o Natal como sem-abrigo.
Zeldin queria montar essa realidade no palco. Isso é “Love”. A situação inicial coloca o espectador imediatamente neste universo: mais do que estar à margem, somos puxados para entrar na sala de convívio. No palco estão diferentes famílias, uma mãe e um filho, um jovem casal com dois filhos e um terceiro a caminho, uma mulher sudanesa e, mais tarde, entra um jovem sírio que ajuda a afincar a precariedade da situação.
Pelos números percebe-se que estas residências temporárias são uma situação muito comum. Servem para acolher famílias sem-abrigo enquanto esperam por um eventual realojamento. O temporário, contudo, é um tempo incerto. A forma como Zeldin trabalha essa incerteza ao longo de hora e meia cria um poderoso elo com a audiência. O dramaturgo é amável com as personagens — protege-as contra julgamentos pela sua vulnerabilidade –, mas para o fazer tem de puxar a audiência para uma espécie de dia que se repete, apesar de nenhum dia se repetir. Isto é, a incerteza do futuro de cada uma daquelas famílias, e a forma como cada um aborda esse fator, é uma constante que dá uma ilusão de que o tempo é uma coisa tão incerta, que não passa.
O Natal torna-se uma falsa esperança enquanto linha temporal. Tanto o é para a mãe e filho que estão naquela situação há quase um ano, como para a jovem família, que espera passar a época natalícia em casa, até porque estão à beira de ter um terceiro filho. E não o podem ter naquelas condições. Da personagem sudanesa sabe-se menos, mas o pouco que diz, e a forma e os momentos em que o faz, são marcantes para definir as pequenas (ou não) dificuldades de existir num espaço tão circunscrito, temporário e incerto.
O que acontece em palco lembra, por diversas vezes, o cinema de Mike Leigh, Ken Loach ou Lynne Ramsay. Sobretudo pela forma como as personagens estão presas e se alimentam das ideias que existem sobre classe. Contudo, Zeldin sai para lá do universo desses realizadores. “Love”, apesar de partir de uma realidade britânica, torna-se universal pela empatia imediata que se cria com os gestos e ações das personagens. O seu dia-a-dia é tão tenso, explosivo, incerto e despegado de privacidade que transborda da realidade do palco para passar para a audiência e com ela viver. É teatro de vida, de empatia.