A Arábia Saudita financiou o processo de Transição espanhola para a democracia e ao Xá da Pérsia foram pedidos 10 milhões de dólares para “apoiar Suárez”. Esta é uma das revelações do jornal espanhol ABC nos “Manglano Papers”, a sua mais recente investigação depois de dois jornalistas terem tido acesso a um extenso arquivo de documentos confidenciais sobre Emilio Alonso Manglano, antigo diretor da Cesid (atual Centro Nacional de Inteligência) entre 1981 e 1995 em Espanha.

Deste trabalho saltam à vista os encontros e chamadas trocadas com o então rei Juan Carlos. Quando Emilio Alonso Manglano se encontrou pela primeira vez com o monarca, a 27 de Maio de 1981, já os dois se conheciam antes de o tenente-coronel ter assumido o cargo de diretor da Cesid e, conta o jornal espanhol, já haveria confiança mútua entre ambos. Confiança essa que permitiu ao monarca fazer uma série de confissões sobre o processo de Transição para a democracia.

Uma das revelações feitas nesta investigação está ligada a um pedido de apoio económico para a Transição espanhola feito por Juan Carlos ao Xá da Pérsia. Emilio Alonso Manglano tomou conhecimento do pedido de Juan Carlos ao Xá da Pérsia a 16 de novembro de 1991, quando recebeu uma chamada de um confidente que tinha estado na noite anterior com o filho de Mohamed Reza Pahlavi, que contou a Manglano que o herdeiro estava  “desconfortável e aborrecido”.

Isto porque Asadollah Alam, que tinha sido primeiro-ministro do Irão, ia publicar um livro no qual mostrava “uma carta do rei de Espanha em 1977 pedindo-lhe [ao Xá da Pérsia] 10 milhões de dólares para apoiar Suárez”, pode ler-se num dos documentos analisados citado pela ABC, referindo-se a Adolfo Suárez, o primeiro presidente democrático após a ditadura do general Franco. “Aparentemente”, observa Manglano, “houve um compromisso de não o publicar durante 30 anos”, mas o tal livro acabou por ser  publicado em 1993, sob o título “O Xá e Eu”.

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Mas a 19 de abril de 1989, Reza Ciro Phalavi, filho do Xá, deslocou-se à Zarzuela para um encontro com o rei, de acordo com as notas de Manglano, tendo apresentado a Juan Carlos “a situação no Irão”, nas mãos dos ayatollahs desde o derrube do seu pai em 1979. Em julho desse ano, o rei de Espanha acabou por informar o diretor do Cesid: “O filho do Xá não tem dinheiro”.

“O Rei saudita deu-me 36 milhões de dólares para a Transição”

Quando Franco morreu, a 20 de novembro de 1975, e Espanha iniciou a sua Transição de 40 anos de ditadura para democracia, tudo precisava de ser feito para o país dar o salto para o clube das democracias europeias. Porém, para todo este processo foi necessário financiamento e Emilio Alonso Manglano tinha informações muito precisas de vários momentos após a morte de Franco e da proclamação de Juan Carlos como rei, que ele próprio terá fornecido algumas dessas confidências ao então diretor da Cesid.

E quem financiou a Transição? A questão foi respondida pelo próprio rei num encontro a 30 de maio de 1989 com Manglano no Palácio da Zarzuela, e talvez tenha sido das maiores confissões de Juan Carlos ao diretor da Cesid que na altura escreveu no seu diário o resultado dessa conversa. Foi a Casa da Arábia Saudita que acabou por ser o grande financiador da Transição. “O rei da Arábia Saudita deu-me 36 milhões de dólares para a Transição”, registou Manglano no seu caderno, aqui citado pelo ABC, referindo que os fundos vinham do petróleo.

Mas o financiamento dos sauditas, com quem Juan Carlos manteve e mantém boas relações, não ficou por aí. “O rei [saudita] concedeu-lhe um crédito de 50 milhões de dólares. Cerca de 30 milhões são retidos no banco, sendo o resto a ser investido. Lucro de 18 milhões de dólares. Agora renovaram 30 milhões nas mesmas condições”, escreveu Manglano, revelando que graças a esses créditos do monarca saudita, o rei de Espanha obteve um lucro de 18 milhões de euros que seriam a base da sua fortuna pessoal.

Em outubro de 1983, Manglano tinha-se também reunido com o monarca e já dava conta de alguns detalhes sobre o financiamento da Transição ainda que os detalhes tenham sido escassos. “O rei, através de Manolo Prado, conseguiu 50 milhões de dólares para a Unión de Centro Democrático (UCD). O que foi feito com isto?”, questionava o diretor da Cesid.

As notas de Manglano mostram que o rei saudita fez vários pagamentos ao rei Juan Carlos no contexto da mudança de regime, sendo que em 1995 o montante total a reembolsar pela coroa ascendia a “cem milhões de dólares”, de acordo com os testemunhos recolhidos pelo diretor do Cesid.

As relações internacionais

Do primeiro encontro com o rei, em 1981, Manglano tirou algumas conclusões sobre os consensos que Juan Carlos foi conseguindo com alguns líderes internacionais de cada um dos lados da Cortina de Ferro. Um dos momentos dessa conversa deteve-se nas relações com os serviços secretos de outros países, em particular com a CIA, onde o rei conta a Manglano uma conversa que teve com Henry Kissinger, Secretário de Estado dos Estados Unidos entre 1973 e 1977. “Kissinger disse-me para não confiar na esquerda, que ela me viraria as costas”, anotou no seu caderno. “Disse a Kissinger para dizer a [Ronald] Reagan que encontrasse um procedimento para a apresentação de relatórios”, acrescentou o rei nesse encontro.

Juan Carlos aponta a Manglano também alguns problemas que surgiram no país na sequência da legalização do Partido Comunista de España (PCE), como o que teria acontecido, por exemplo, no golpe de 23F de 1981. “[Nicolae] Ceaucescu sujeitou-me ao PC durante um ano. Não posso dizer”, disse o rei ao chefe dos serviços secretos espanhóis.

Manglano também terá recebido ordens do Ministério da Defesa para quando tomasse posse, tendo de modernizar o Cesid, controlar o terrorismo e apagaziguar os movimentos involucionistas. Movimentos esses que Juan Carlos explicou a Manglano: “Ninguém explicou ao exército o que é a Coroa”, anotou. “No exército,  coisas simples precisam de ser feitas: novo destacamento, capitanias gerais…as instituições devem ser respeitadas.”

O que guardam os Manglano Papers?

Os ditos “Manglano Papers” são compostos por um extenso e complexo arquivo de sete recipientes com centenas de documentos e agendas sobre Emilio Alonso Manglano, contendo cerca de 70 cartas privadas que este recebeu de várias pessoas e outras centenas de cartas com personalidades mundiais — é o caso de George H. Bush — e documentos e relatórios militares.

No meio do arquivo havia também notas pessoas de Manglano, que anotava coisas em folhas soltas e em vários cadernos que guardava, assim como fotografias com as figuras mais importantes como é o caso de algumas com o rei e a rainha de Espanha ou o primeiro-ministro da altura, Filipe González.

A investigação debruçou-se também sobre vários arquivos com assuntos do Cesid e do exército, e outros tantos documentos confidenciais que incluíam transcrições de gravações feitas no Cesid e também vários relatórios confidenciais. O antigo diretor do Cesid também tinha informações próximas do Ministério da Defesa, tendo guardado 21 cadernos rotulados de “MD”.

Parte do seu arquivo familiar também foi analisado, contendo fotografias e informação relevante sobre o seu pai, também militar, Luis Alonso de Orduña, assim como uma biblioteca de jornais, onde Manglano manteve recortes de imprensa da época em que foi mencionado. Grande parte desta investigação acabou por centrar-se em 19 diários que datam entre 1981 e 1999, onde estão registadas algumas conversas com o rei Juan Carlos ou membros do governo.

Esta investigação divulgada agora pelo ABC deu origem à biografia “El jefe de los espías” assinada pelos dois jornalistas do jornal espanhol, Juan Fernández-Miranda e Javier Chicote.