Quando a 11 de novembro de 2010 sete inspetores da Polícia Judiciária e um inspetor tributário entraram na Quinta do Patino, em Alcoitão, com um mandado de busca para executar na casa de João Rendeiro, que estava a ser investigado, só lá estava a sua mulher, Maria Jesus Rendeiro. Ele estava no estrangeiro, provavelmente no Brasil, onde fazia consultoria, segundo lembra ao Observador uma fonte que esteve presente no local.

E, lá dentro, o cenário, no que toca a obras de arte espalhadas por todo o lado, não seria muito diferente do que a Polícia Judiciária encontrou nos últimos dias, ainda que desta vez, 11 anos depois, parecesse faltar algo.

Mas voltemos a 2010. Há anos sem trabalhar e a fazer apenas voluntariado, a companheira de João Rendeiro ficou “extremamente nervosa”. Os inspetores, acompanhados de magistrados judiciais, ainda esperaram pelos advogados do casal e depois começaram a percorrer a vivenda, onde se destacavam várias obras de arte espalhadas por vários locais da casa. No escritório do piso térreo encontraram agendas, faturas, listas de contactos, trocas de correspondência com advogados e até 136 notas de quinhentos euros (num total de 68 mil euros)  dentro de um envelope manuscrito com a frase ” 5 maio 2010″ e até uma capa branca com referência “Sotheby’s” contendo no seu interior descrição de obras de arte.

Na garagem da residência estava um Mercedes com telemóveis, um disco externo e alguns recibos da Caixa Geral de Depósitos. Havia também extratos de conta do “Fortis Bank Nederland” e correspondência deste banco à “Stiching Ellipse Foundation” — a fundação de obras de arte criada por Rendeiro.

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Já num cofre da vivenda localizada num condomínio, as autoridades encontraram várias telas a óleo e a acrílico, algumas sem assinatura, outros com assinatura das artistas Helena Almeida e Lurdes de Castro. Também no escritório havia obras de arte, pelo menos sete pinturas, duas delas a óleo de Joaquim Rodrigo. Já na sala do rés do chão havia uma pintura a óleo de Dacosta, uma aguarela de Dórdio Gomes e oito outros quadros de artistas diversos, como Domingos Alvarez ou Dórdio Gomes. Segundo o mandado de apreensão a que o Observador teve acesso, na sala de jantar havia mais cinco peças e uma escultura, no corredor, oito quadros — um deles assinado por René Bertholo. Nos quatro quartos as autoridades registaram os nomes de mais de uma dezenas de quadros, assim como no vão das escadas, no hall, na sala de jogos da casa onde habitava apenas o casal e um cão.

No total foram registados 124 quadros, além de várias esculturas. À data Rendeiro estava ainda a ser investigado pelos crimes de burla qualificada, falsificação de documento, infidelidade, fraude fiscal e branqueamento de capitais. Suspeitava-se então que Rendeiro se teria apropriado de 5 milhões de euros com prejuízo para o BPP, clientes e Estado. E que as obras de arte ali encontradas teriam sido compradas com dinheiro do banco.

Já nos últimos dias, a PJ acredita que nem todas as obras lá estavam e que algumas não eram as verdadeiras.

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O Ministério Público decidiu, então, recolher toda a documentação e o dinheiro encontrado, no entanto não levou as obras de artes. Decidiu que Maria Jesus Rendeiro ficaria como fiel depositária das mesmas. Ficando à data ciente de que não poderia “transportar, alienar, onerar a qualquer título os referidos objetos” sob pena de incorrer nos crimes de descaminho e desobediência. Na altura o advogado Paulo Farinha Alves ainda tentou que os quadros não fossem apreendidos, alegando não haver sequer no processo uma ordem cronológica sobre os alegados crimes em causa e a aquisição das peças. Mas de nada lhe serviu.

Este processo só teria resolução oito anos depois, com Rendeiro a ser condenado a cinco anos de cadeia. A este caso juntavam-se dois outros processos nos quais foi também condenado, num deles a uma pena de dez anos de cadeia. Durante estes anos em que estava a ser julgado, Rendeiro deu sempre conta das suas deslocações ao estrangeiro, até que no final de setembro, na iminência de cumprir pena, avisou a justiça a portuguesa de que não tencionava voltar a Portugal.

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PJ volta à casa mais de dez anos depois

Com uma ordem do tribunal, a Polícia Judiciária voltou à Quinta do Patino onze anos depois para verificar se os quadros que serviriam para pagar ao Estado e aos lesados do BPN o valor que perderam ainda lá estavam. Uma fonte da Polícia Judiciária explicou ao Observador que durante essa busca, que decorreu esta segunda-feira, foram detetados dois quadros que pareciam falsificações. O jornal Expresso avança que entre o espólio que era suposto ter sido mantido por Maria Jesus 15 quadros desapareceram. Perante esta informação, a juíza ordenou que todos os quadros fossem retirados — tendo a Polícia Judiciária 30 dias para o fazer, numa operação que se adivinha delicada.

Ainda segundo fonte judicial ao Expresso, a mulher do antigo banqueiro começou por se opor à retirada das obras acabando depois por informar o tribunal que nesta década era “natural” que as obras tivessem sido movimentadas — o que não lhe era permitido, como ficou lavrado no auto de apreensão. Disse também que “metade” das obras já tinham sido localizadas fora da residência, uma outra “53”, um óleo sobre tela de Robert Loncher, estará no “hall da garagem”, enquanto a outra metade estará ainda a ser procurada.

Mesmo que os quadros apareçam, Maria de Jesus Rendeiro incorre num crime de desobediência, por os ter movimentado. Caso a Polícia Judiciária perceba através dos seus peritos do Laboratório de Polícia Científica que os quadros que vai trazer são afinal falsificações, Maria de Jesus incorre num crime de descaminho punível com cinco anos de prisão. Para tal será também tido em conta, apurou o Observador, se houve negligência ou dolo, uma vez que o arguido, marido de Maria Jesus, continuou a viver naquela casa.

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Um processo crime que deverá correr paralelamente ao do marido e que pode depender do resultado das perícias aos quadros. Para tal os peritos da PJ podem conseguir à primeira vista e com uma consulta no catálogo perceber que são falsos, mas outros poderão implicar análises mais específicas às tintas, podendo fazer arrastar o processo por mais tempo.

Lesados do BPP falam em mais uma forma de ressarcimento que foi mexida

Do lado da Associação Privado, que representa lesados do banco que ainda não viram os seus investimentos serem ressarcidos, esta é mais uma demonstração de que a Justiça não preveniu o que podia acontecer, depois de Rendeiro ter fugido.

“Vai prejudicar algumas formas de ressarcimento de que fomos vítimas. Essas obras deviam ter sido imediatamente apreendidas como forma de assegurar que não eram falsificadas ou vendidas”, diz ao Observador Artur Barreto, membro da associação e também lesado, que garante que ao longo do processo a Associação chegou a alertar o tribunal para essa questão. Já o advogado Paulo Rocha, que integra a associação, diz que para já não lhes interessa o processo do descaminho, porque estão neste momento a fazer um levantamento de todos os gastos que têm sido feitos com os fundos que estão a ser geridos por uma comissão liquidatária nomeada pelo Banco de Portugal. “Vai ser interessante ver os resultados”, promete.

O Observador tentou saber junto da Procuradoria Geral da República e da defesa de Maria de Jesus Rendeiro se o processo crime já foi aberto, como determinou a juíza Tânia Loureiro Gomes e se ela é arguida no processo crime. Mas não obteve qualquer resposta.