O Presidente da República alertou este domingo para a pobreza em Portugal, qualificando-a como “um problema enorme” e “o problema dos problemas”, apelando à ação dos cristãos e defendendo que devem projetar a sua fé no espaço público.
Marcelo Rebelo de Sousa falava na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, no lançamento do livro “Que fizeste do teu irmão?”, que reúne textos de Alfredo Bruto da Costa, publicado pela Editorial Cáritas, com o subtítulo “Um olhar de fé sobre a pobreza no mundo”.
Numa intervenção de cerca de meia hora, o chefe de Estado descreveu Alfredo Bruto da Costa como “um profeta” que fez da “libertação da pobreza” o desígnio da sua vida, e no final condecorou postumamente o antigo ministro dos Assuntos Sociais com a Ordem da Liberdade, que entregou à família.
O Presidente da República partilhou “uma primeira reflexão” a propósito da obra póstuma hoje lançada: “A urgência da pobreza, a urgência do tema deste livro, mas também do empenhamento de cada um de nós”.
“Antes da pandemia dizia-se que havia perto de 100 milhões de pobres, depois da pandemia 220 milhões de pobres no mundo. Antes da pandemia dizia-se que havia dois milhões de pobres em Portugal, depois da pandemia dois milhões e 200 mil em Portugal”, referiu.
Marcelo Rebelo de Sousa mencionou que a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza tem como objetivo “a saída da pobreza de 360 mil portuguesas e portugueses até 2030” e observou: “Estarmos a falar em mais de 50 anos ou a caminho de 50 anos para atingirmos os dois milhões e 200 mil”.
“Temos, portanto, um problema enorme, um problema primeiro, o problema dos problemas, e só isso justifica a importância deste nosso encontro de hoje”, considerou.
Em seguida, o chefe de Estado, que é católico, dirigiu-se aos cristãos na assistência: “Para muitos de nós aqui presentes, há um dever de agir, que é a grande diferença entre Novo e o Antigo Testamento. No Antigo Testamento havia sobretudo um dever de não agir, de não violar determinadas regras, princípios ou valores ou ditames. Agora há o dever de agir para os concretizar”.
“Essa é uma das dimensões da ética do cuidado: agir no plano social, diríamos, político, no sentido mais vasto da política”, reforçou, mais à frente, após citar um texto em que Bruto da Costa afirma que, “ao abster-se da intervenção política, o cristão demite-se do exercício consistente da caridade e da justiça”.
O Presidente da República argumentou que “não há oposição” constitucional a essa intervenção, pelo contrário: “A liberdade religiosa consagrada na Constituição é a liberdade de viver a fé tal como ela é. E a fé não se vive dentro dos templos, só. Não se vive dentro das comunidades que perfilham a mesma fé, só. Não se vive à porta fechada, nos debates, nas reflexões, nas orações, vive-se no espaço público. Não viola a Constituição, antes aplica a Constituição a vivência da fé no espaço público”.
“Alfredo Bruto da Costa pertenceu a uma geração que fez isso, e fez isso a maior parte do tempo em ditadura. E aí era óbvio. Se é óbvio em ditadura, por que é que é menos óbvio em democracia? Qual é a lógica? Quer isto dizer que há que existir unicidade, uniformidade nas vivências de fé? Não. Cada qual tem o seu percurso de fé”, prosseguiu.
De acordo com Marcelo Rebelo de Sousa, “a fé tem inevitavelmente implicações sociopolíticas, se não é uma fé coxa”, e em matérias como a pobreza “é impossível que os cristãos, de acordo com o percurso que cada qual tem da sua fé, não se sintam obrigados a projetá-la no espaço público”.
“E que não pode ser mais público do que numa democracia: por definição é mais público, é mais exigente, é mais partilhado, é mais partilhado do que numa ditadura. E este apelo é muito importante, penso eu, e por isso esta obra é tão importante, e por isso o encontro de hoje é tão importante”, concluiu.
O professor universitário e antigo ministro Alfredo Bruto da Costa morreu em 11 de novembro de 2016, aos 78 anos.
Engenheiro, doutorado em ciências sociais, Bruto da Costa foi ministro dos Assuntos Sociais no Governo chefiado por Maria de Lourdes Pintasilgo, provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e presidiu ao Conselho Económico e Social e à Comissão Nacional de Justiça e Paz.
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