David Lean foi contactado para levar “Duna” ao cinema em 1971, mas recusou (será que sabia que Paul Atreides, o herói do livro de Frank Herbert, é parcialmente baseado no T.E. Lawrence que filmou em “Lawrence da Arábia”?). Em 1976, Ridley Scott trabalhou num argumento escrito pelo próprio Herbert, mas acabou por desistir. Dois anos antes, Alejandro Jodorowsky tinha tentado pôr de pé a sua versão da obra num filme de 10 horas com Salvador Dalí, Amanda Lear, Alain Delon, Mick Jagger, Orson Welles e Gloria Swanson, entre outros, banda sonora dos Pink Floyd e conceção artística de Chris Foss, Giraud/Moebius e H.R. Giger, mas falhou também. Em 2013, foi feito um documentário sobre este projecto, “Jodorowsky’s Dune”, de Frank Pavich.
Em 1984, com Dino De Laurentiis a produzir, David Lynch assinou uma adaptação imponente e “brutalista”, na qual conseguiu destilar o essencial, e o possível, desta obra cimeira da literatura de ficção científica (o livro inaugural dos seis da saga escritos por Frank Herbert) e extremamente problemática de filmar, pela elaboradíssima conceção política, ecológica e religiosa do mundo futuro em que decorre. A versão de Lynch é execrada por alguns e defendida com unhas e dentes por outros. Seguiu-se, em 2000, a minissérie “Frank Herbert’s Dune”, no Sci-Fi Channel, de que quase ninguém se lembra. E agora, estreia-se finalmente o “Duna” de Denis Villeneuve, que dividiu a sua versão em duas partes, tendo resistido, durante a pandemia, a passar o filme para o “streaming” em vez de o estrear em sala.
[Veja o “trailer” de “Duna”:]
Há bastantes pontos de contacto entre o filme de David Lynch e este de Villeneuve, na conceção artística, na visualização geral da era e do ambiente em que a história se passa e no desenvolvimento narrativo. Ambos têm respiração épica, horizontes cinematográficos rasgados, espectacularidade e clareza de exposição, e um mesmo tratamento da tecnologia (os fabulosos ornitópteros, verdadeiras libélulas mecânicas). Mas apesar de ser tu-cá-tu-lá com a ação (basta ver “Sicário-Infiltrado”), Denis Villeneuve é também um realizador pausado, paulatino, e aborda “Duna” como se fosse “O Primeiro Encontro”, a sua excelente fita de 2016 sobre um lento e intrincado contacto com alienígenas. Ora “Duna” é uma epopeia galáctica místico-aventurosa que pede pedal a fundo e não ponto morto.
[Veja uma entrevista com Denis Villeneuve e com Timothée Chalamet:]
A versão de Lynch era palpitante, intensa e dinâmica. Este novo “Duna”, apesar da grandiosidade, tem tendência a arrastar os pés, a deixar-se entorpecer devido a um excesso de circunspeção e solenidade, que alterna com explosões de ação. Mas onde o filme falha mesmo e não consegue nem de longe medir-se com o de David Lynch, é no elenco. O “Duna” deste tinha Kyle MacLachlan como Paul Atreides, o herói messiânico e com poderes paranormais da história, Jurgen Prochnow, Jose Ferrer, Virginia Madsen, Sean Young (no papel de Chani), Max Von Sydow, Silvana Mangano, Sting (no venenoso Feyd-Rautha), Kenneth McMillan (o Barão Harkonnen), Richard Jordan, Patrick Stewart ou Paul L. Smith no animalesco Beast Raban.
A versão de Villeneuve perde logo por ter o mortiço canastrãozinho Timothée Chalamet, expressivo como um lenço branco, a fazer um Paul Atreides sem perfil de nobreza, chama heroica ou capacidade de introspeção. Chalamet representa sempre da mesma maneira, quer esteja em Nova Iorque nos nossos dias, quer esteja no planeta Arrakis num futuro distante. Tirando Rebecca Ferguson em Lady Jessica, a mãe de Paul, e Charlotte Rampling na Madre Superiora das Bene Gesserit, o resto do elenco, do podão Jason Momoa como Duncan Idaho a Stellan Skarsgard a imitar Marlon Brando em “Apocalypse Now” no banhudo Barão Harkonnen, passando pelos insípidos Oscar Isaac e Zendaya a fazerem de Duque Leto Atreides e Chani, não colhe.
[Veja momentos da rodagem do filme:]
Quando Denis Villeneuve mete a quinta da espectacularidade, “Duna” enche-nos os olhos e entusiasma: as gigantescas naves espaciais dos Sardaukar e dos Arkonnen a invadir Arrakis no meio da noite, o aparecimento dos colossais Vermes da Areia, que engolem um enorme veículo de colheita de especiaria como se fosse um Mon Chéri, a fuga de Paul e da mãe no ornitóptero apanhado pela tempestade de areia, o primeiro contacto hostil com os Fremen (que aqui são “arabizados”, o que faz algum sentido, já que Frank Herbert os baseou nos beduínos do deserto, e pese embora algum “casting” claramente de critério étnico). Este primeiro filme nem chega a abranger metade do livro de Herbert. Veremos se Villeneuve consegue limpar a areia do irregular motor cinematográfico de “Duna” na segunda parte.