Dez anos de planificação, 300 cientistas de 20 países, 100 toneladas de equipamento. Tudo isto seguiu em direção ao Ártico no quebra-gelo Polarstern. O objetivo desta gigantesca operação era entender o que se passa no oceano que arrefece o nosso planeta e como é que as alterações climáticas estão a causar danos no local que depois se propagam como uma bola de neve. Tudo o que por lá se descobriu está em “Expedição ao Ártico: Um Ano no Gelo”, o documentário com estreia marcada no canal Odisseia este sábado, 23 de outubro. mas que é possível ver em diferentes horários, ao longo dos próximos dias
Dividida em duas partes, a produção tem imagens inacreditáveis de paisagens que parecem pinturas, ursos polares que só são simpáticos ao longe — atingem 60 quilómetros por hora e, se tiverem fome, podem ser perigosos — e placas de gelo que começam a mover-se e a partir-se com um ruído insuportável como se se estivesse em pleno terremoto.
Com temperaturas de menos 40ºC, a primeira equipa instalou-se a 21 de setembro de 2019. Ao longo dos meses seguintes foram chegando mais especialistas. Biólogos, guardas de ursos, fotógrafos, físicos da neve, equipas de gelo, equipas de atmosfera, etc. Manuel Dall’Osto, que trabalha atualmente no Instituto de Ciências do Mar de Barcelona (Espanha), juntou-se ao grupo em julho de 2020. O químico que estuda a formação de nuvens nos oceanos nunca viu a noite nos 100 dias em que esteve no Ártico — houve colegas que, em contrapartida, não tiveram direito a sol. Os dias de trabalho duravam 15 horas, não havia fins de semana e a pior parte era a relação entre as pessoas — confinadas no mesmo espaço durante meses.
Porém, a expedição foi um sucesso — até para surpresa de Manuel Dall’Osto — e o que os cientistas descobriram é inédito e pode ser descoberto no documentário agora exibido pelo Odisseia. Ao Observador, o químico explicou o que o surpreendeu mais e o que acha que vai marcar os espectadores.
[veja aqui imagens da expedição:]
Quantos dias fez parte da expedição?
No total estive lá à volta de 100 dias, entre julho e outubro [de 2020]. Foram 100 dias, 95 sem ver uma única estrela porque estávamos no Pólo Norte e estava sempre de dia. Não vi a noite durante mais de dois meses.
Quando é que começou a preparação para esta expedição?
Há cerca de dois anos. Tivemos de nos preparar e maximizar recursos. O maior problema era que havia cerca de 50 pessoas no barco. Pode parecer muito, mas 50 pessoas para gerirem uma expedição ao Ártico não é muito. Tivemos de pensar cuidadosamente em quem mandar. Também houve equipamentos que chegaram de outros países e que tivemos de aprender a usar. Não havia espaço para todos os cientistas, por isso, por exemplo, tive de manusear equipamento do Reino Unido e dos EUA. No entanto, a preparação é sobretudo mental. Quando vamos a expedições polares é sempre mágico, vemos ursos polares, paisagens lindas. Mas, ao mesmo tempo, estamos longe da civilização durante muito tempo. O ano passado foi particularmente duro por causa da Covid-19.
Estava confinado quando começou a preparar-se para partir?
A minha preparação começou durante a Covid-19, sim. Já tinha os meus pais confinados, foram dos primeiros a ficar em quarentena e eu não sabia se podia ir para o Pólo Norte. A preparação começou em março e havia muitas questões. Devemos ir? Devemos ficar? Temos a obrigação moral de não travar a maior expedição de sempre ao Ártico? Quando decidimos partir, estivemos em isolamento na Alemanha antes de zarparmos, fechados duas semanas sem poder sair de um quarto. Deixavam-nos comida à porta e esperávamos cinco minutos para ir recolhê-la.
Foi a sua primeira expedição polar?
Não, já fiz algumas. Fui à Antártida três vezes. Depois fui ao Pólo Norte e fiz uma expedição coreana.
Esta expedição ao Ártico foi a mais longa que fez até hoje?
Sim. Já tinha estado na Antártida mas tinha ido algumas vezes a terra. Este foi o mais longo e, de longe, o mais desafiante projeto. Tínhamos de fazer as coisas bem, é muito dispendioso. Houve muito stress à mistura.
Era como se só tivessem uma oportunidade?
Exatamente. E depois estamos num navio e as pessoas começam a ficar cansadas, nervosas, discordam. É como uma maratona. É solitária e temos de ter cuidado para gerir tudo. Se não, no segundo mês estamos deprimidos e a chorar o tempo todo.
Qual era a sua função na equipa?
Sou químico e estudo nuvens nos oceanos, especialmente no Pólo Norte e no Pólo Sul. O que faço é tentar perceber como as nuvens são formadas no Pólo Norte. Trabalho numa câmara escura onde podemos simular o oceano e a atmosfera. Fazendo uma data de experiências, o que fiz foi recolher gelo e água do Ártico. Depois simulamos ondas, obtemos partículas e temos alguns utensílios que simulam nuvens. Estava lá para juntar as nuvens e o oceano. É muito difícil prever as nuvens lá. Elas arrefecem o Ártico e, se tivermos uma nuvem hoje, não temos muito sol e por isso o Ártico não aquece.
Como era um dia típico?
Às 6h30 era hora de acordar. Se acordássemos às três da manhã para ir à casa de banho, já não conseguíamos voltar a dormir porque víamos o sol. O nosso corpo não se habitua. O pequeno-almoço era às 7 horas e às 7h45 havia uma reunião todos os dias. Discutíamos o tempo, porque às vezes havia tempestades, ursos polares, uma grande parte de gelo que se tinha mexido e que nos impedia de circular. Às 8h30 acabava e, se houvesse a possibilidade, íamos para o terreno. Algumas pessoas faziam medições da água, outras andavam de helicóptero. Depois, às 18h30, havia nova reunião. Às 20 horas começávamos a fazer todas as coisas que não tínhamos feito durante o dia porque as reuniões consumiam tantas horas que não tínhamos tempo para trabalhar. Ficávamos a trabalhar até às 23 horas e depois cama. Portanto, tínhamos dias de 15 horas e não tínhamos fins de semana. Cerca de duas vezes por semana havia um bar, uma pequena sauna, e piscina. Tentávamos organizar festas de aniversário e fazíamos barbecues.
Era uma expedição de cerca de 80 milhões de euros. Este navio custava à volta de 200 mil euros por dia, entre combustível, pessoal, etc. Todas as horas custavam milhares e, por isso, era preciso tentar maximizar tudo. É incrível, mas muito cansativo.
Qual foi a coisa mais fascinante que descobriu?
Que as pessoas continuem a discutir muito quando estão umas com as outras [risos]. As relações humanas num navio são desafiantes. Há sempre algumas pessoas com as quais é difícil lidar. Isso surpreendeu-me porque pensava que toda a gente se daria bem.
Mas é um sítio fechado no meio do nada.
Exatamente. E podemos ser profissionais ao máximo mas as relações humanas são muito imprevisíveis. Também me surpreendeu o facto de a expedição realmente ter funcionado, de ter sido um sucesso. Reunir 18 países, muitas pessoas, muitos barcos e realmente fazer acontecer foi surpreendente. No último dia chorei porque havia um urso polar a olhar para nós. Sabemos que os deixamos lá e que estamos a destruir o Ártico. Sentimos que na civilização há uma falta de respeito, que não cuidamos de muitas coisas.
O que acha que vai surpreender mais os epectadores ao verem o documentário?
Penso que as pessoas vão olhar para nós e pensar: “Estes tipos devem ser mesmo doidos para passarem meses sempre às escuras só por causa das alterações climáticas”. Depois vão ficar surpreendidas com as cores do oceano, do gelo, do por do sol e com a falta de ruídos. Pelo menos foi isso que guardei.
No primeiro episódio alguém diz que a qualidade de vida no mundo ocidental continua demasiado boa para os governantes atuarem em relação às alterações climáticas. Sente isso?
Daqui a uns anos, quando os incêndios que têm em Portugal passarem a ser normalidade, vamos ver como é que vão sentir-se.